REMINISCÊNCIAS
Rui Martinho Rodrigues*
Isolamento social, noticiários monotemáticos e a inconveniência do
convívio social incomodam até misantropos. O distanciamento involuntário
aborrece. Até viciados em leitura pensam nas atividades sociais agora
desaconselhadas. A percepção do tempo se transforma. Horas escorrem preguiçosas.
Pensamentos situados no fim de uma longa fila, agora encontram espaço.
O futuro, sempre insondável, tornou-se preocupante. A incerteza
adquiriu status de inquietação. Mnemosine, a musa da memória, desperta a
lembrança de Clio, sua filha e de Zeus, deusa da História, que tem consigo uma
trombeta e descreve os desafios vividos e as soluções sempre encontradas. Não
há limite para os sacrifícios antes do epílogo.
Mnemosine suscita reminiscências que despertam o olhar para o
outro extremo: o futuro e o encontro com o inescrutável. O porvir pede a
compreensão do passado, fechando o círculo. Em uma vida testemunhamos
transformações nos mais diversos campos.
A volatilidade do que Zygmunt Bauman (1925 – 2017) deu o nome de
modernidade líquida, transformou as atividades lúdicas infantis, como as
brincadeiras de roda; o jogo de pedras das meninas; o fura chão dos meninos. Cadeiras nas calçadas quase desapareceram; novelas do rádio foram
extintas; vendedores de porta em porta sumiram. Referências culturais e
identidades se dissolveram.
As novas tecnologias impactantes em quantidade superaram as
inovações de muitos séculos em uma só geração. Afastaram ou atenuaram o perigo
de algumas epidemias recorrentes, como varíola, sarampo, parotidite,
poliomielite, meningite e difteria.
Mas chegaram outras, como zica, chikungunya, dengue, Aids, gripe
asiática e gripe suína. Antibióticos, antivirais e principalmente vacinas
haviam nos proporcionado uma confortável sensação de segurança.
No tempo de uma vida não muito longa tivemos muitas crises
políticas. Parlamentarismo, deposição de presidente, renuncia de um papa,
revolução dos costumes, reforma ortográfica, reformas do ensino e graves crises
financeiras e econômicas. Experiências históricas orientavam a busca de
soluções em todas elas.
Estrategistas estudam história militar; economistas analisam crises
passadas; sanitaristas aprendem com a história das epidemias. Veio, porém, o
inédito. “De repente do riso fez-se o pranto/(...)/Fez-se do amigo próximo o distante/(...)/De repente, não mais que de repente” (Marcus Vinicius de Moraes,
1913 – 1980).
A singularidade sem precedente não se faz acompanhar de lições do
passado. Não é coisa de Macunaíma (Mário Raul Morais de Andrade, 1893 – 1945),
que só fecha a porta depois de roubado. Afaste-se o complexo de vira-lata (Nelson
Falcão Rodrigues, 1912 – 1980). O radicalmente novo não tem manual de instrução.
A calamidade pública facilita a corrupção, repondo o citado herói
sem caráter no centro da cena. Claude Lévy-Strauss (1908 – 2009) não estava
inteiramente certo. Não só os nossos trópicos são tristes. Foi o mundo que “de repente,
não mais que de repente” se fez triste, perplexo, e entrou em pânico.
Subitamente, porém, a trombeta de Clio anunciará a superação do
infortúnio. Não sabemos os sacrifícios que encontraremos pelo caminho, mas a
História tudo resolve, apesar da corrupção que se aproveita do afrouxamento dos
controles durante a calamidade; da demagogia, forma decadente da democracia
(Aristóteles, 385 a.C – 323 a.C). Invoca-se em vão o santo nome da ciência, como se no caso ela fosse unívoca. Convém, todavia, na luta pelo poder, seguir o
caminho proposto por Nicolau Maquiável (1469 – 1527): aparentar virtude.
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