“Cemitério de Galinha”
Vianney Mesquita*
Dize-me o que comes e dir-te-ei quem és. (ANTHELME BRILLAT – SAVARIN, cozinheiro
francês).
Sempre
me comprazeu o fato de haver recebido de meus pais (Maria de Lourdes Campos de
Mesquita e Vicente Pinto de Mesquita) instrução religiosa rígida e determinação
comportamental esmerada no âmbito doutrinário e da Igreja Católica, Apostólica
e Romana.
Desde
o uso da razão, estava no Catecismo, na Palmácia dos ’50, Paróquia de São
Francisco de Assis, então sob o vigariato do Cônego Joaquim Alves Ferreira, seu
titular, de 10 de fevereiro de 1946 a 1 de março de 1956, coadjuvado por seu
irmão, Monsenhor Pedro Alves Ferreira (meu padrinho de batismo).
Jamais
nos afastamos – meus onze irmãos e eu – desta orientação eclesial de conteúdo
tridentino, continuada na Freguesia de Nossa Senhora de Nazaré, desde que aqui
a Fortaleza chegados em 2 de agosto de 1960. Hoje, dez homens e duas mulheres, casados
com os mesmos cônjuges desde a celebração matrimonial, moramos em Fortaleza,
exceto a irmã mais nova – Lília Mesquita Reyntjens – que reside na cidade de Overijse,
Bélgica – União Europeia (bem vizinha a Bruxelas), com o marido, Dirk Reyntjens,
e os filhos Paulo e Peter.
Constantemente,
também, na obediência à sentença bíblica Servite
Domino in laeticiae (Salmo 99,2 –
Serve a Deus com alegria), recorro ao
bom humor cearensês e me vejo alegre,
relembrando passagens brejeiras da vida nordestina – ordinariamente pretextos
para piadas e crônicas – sempre ataviadas de complementos da industriosidade cômica
regional, ao mesmo tempo em que pretendo servir ao Senhor, conforme o versículo
do salmista.
Embora
não muito convincente a desculpa, confesso, recordo-me do tempo em que
acolitava o Padre Tomás de Aquino Alves Correia – natural do Acarape, o qual
foi titular da mencionada Unidade eclesial palmaciana, de l de março de 1956
até 14 de fevereiro de 1962 – quando de suas vilegiaturas pelas então quatro
capelas paroquiais – Tanques, Jubaia, Canadá e Gado dos Ferros. Os dois primeiros
lugares eram (e ainda são) componentes do Município de Maranguape, o terceiro
pertence a Redenção e somente “o Gado”, como ainda é, Distrito de Palmácia,
município desde 26 de agosto de 1957, quando, por lei, se independizou da Terra
de Chico Anísio.
A
despeito disso, mesmo de Maranguape e Redenção, os três lugares faziam parte da
Paróquia de São Francisco de Assis, o que discrepa diametralmente do tempo em
que o Brasil era um Estado confessional, não um Ente Estatal leigo, fato ocorrido
somente com a edição do Decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890, sugerido pelo
baiano Ruy Barbosa, logo após proclamada a República, em 15.11.1889, quando a
religião católica deixou de ser o culto oficial do País.
Mencionadas
viagens às capelas eram feitas, a cavalo, quando da realização de missas
mensais ou bimestrais e desobrigas anuais, estas a fim de que os fiéis
cumprissem o dever para com o quarto Sacramento, o da Penitência, de confessar-se
pelo menos uma vez por ano. Via de regra, as montarias eram cavalos e burros
(jamais o burro para o Padre!), que os encarregados pelas capelas mandavam à
Palmácia. Em geral, os muares eram choutões, não bralhavam de jeito nenhum, como
o faziam os equinos, desenvolvendo chouto ou galope, o que deixava os sessos do
cavaleiro em carne viva e depois viravam as famosas “tapiocas” purulentas, as quais,
após incomodarem sobremodo, estorricavam e descascavam, muitas vezes trazendo
até febre acima de 40 graus Celsius. Entrementes, os sacerdotes podiam
sentar-se á vontade, pois suas cavalgaduras, sempre cavalos, em vez de choutar,
bralhavam na macieza dos trens-bala supermodernos.
Naquele
tempo, bem mais do que hoje, os padres da Igreja Católica eram objeto de
exagerada veneração – para não dizer adoração – por parte das pessoas do povo,
principalmente no que concernia aos alimentos, no café, almoço e jantar, o que
de mais saboroso e basto poderia ocorrer, ou seja, muitos e bons.
Em
razão dessas condescendências alimentícias sob a umbela de Deus, foi que
apareceu a expressão comer como um frade,
a qual titulou um livro de Frei Betto, editado pela José Olympio. E não é à-toa que foram cunhadas dicções de iguarias
inventadas nos conventos e noutras circunstâncias de estar de presbíteros e
auxiliares leigos católicos, como barriga
de freira, pastel de Belém, fatias de bispo, papo de anjo e tantas outras
denominações similares.
Bem
se lembra o leitor mais na idade do fato de que, antes da instalação de granjas
produtoras de aves e ovos, a galinha era comida de luxo, especialmente dos economicamente
mais humildes, e somente saboreavam os “pirões de paridas” as senhoras em
resguardo de parto normal, muitas vezes ocorrentes até sem o concurso das
parteiras e cachimbeiras, sem quaisquer distocias, conforme sucede hoje, com as
parições cesarianas desnecessárias, para o Sistema Único de Saúde – SUS pagar,
com os recursos dos impostos por nós recolhidos.
Daí
se exprimir, então, o dito de que, “quando pobre como galinha, um dos dois está
doente”, semelhantemente a “pobre nunca come mel; quando come, se lambuza”, bem
assim o dito segundo o qual “o pão do pobre só cai com a margarina pra baixo”.
Então,
em qualquer visita destas às capelas da Palmácia, a possibilidade de perecer
uma penosa para ser servida assada ou à cabidela beirava os cem por cento. Era
batata!
De
tal modo, aflorou a gaiata e veraz asserção matuta, consoante a qual “barriga
de padre é cemitério de galinha”.
Para
remate destas notas de memória, recordo-me de que, numa desobriga feita pelo
citado Padre Tomás de Aquino e pelo então Padre Gerardo José Campos (com quem
trabalhei na TV Ceará – Canal 5), em um jantar no sítio Araticum, Distrito de
Gado dos Ferros, em Palmácia, na casa de seu
Luís Bezerra/dona Delmira, foi servido um peixe cozido delicioso, que logo
me fez evocar o pirarucu (Arapaima gigas)
vendido em rolos na Conde d’Eu, aqui em Fortaleza.
Quando
a auxiliar da cozinha repunha o peixão à mesa, sem saber que espécie de pescado
era, o Padre Tomás indagou:
–
Pirarucu?
Ela
olhou à socapa e respondeu:
–
Tiraram, sim senhor!
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