segunda-feira, 10 de outubro de 2016

ENSAIO LITERÁRIO - Folhas Mortas IV (VM)


Folhas Mortas
Inspirações em Versos Ecléticos
(IV- Final)

Vianney Mesquita*


A poesia não tem presente: é esperança ou saudade. (Camilo Castello Branco).


Em Para uma Teoria do Verso, Azevedo (passim) destaca os versos do sistema sáfico (basicamente com ictos na quarta e na décima sílabas), ibéricos ou de arte maior (quinta e décima) e provençal ou de gaita galega (acentos na quarta, sétima e décima sílabas), sendo que os heróicos e sáficos são praticados pelo nosso autor - Santiago Vasques Filho – com ou sem variações.

De hendecassilábicos – ou versos de arte maior – também é feito Folhas Mortas, em alguns desses esquemas, como no misto iâmbico-anapéstico, com um iambo e três anapestos (iambo, sem cogitar na violenta sátira francesa em alexandrinos alternados), no conjunto intitulado Terceiro Tema, sem variação de tônicas, isto é, com acentuação fixa nas segundas, quintas, oitavas e undécimas sílabas:
               
Não julgo que viesses do Olimpo traçado
Por minhas poesias ou doidas quimeras,
Nem foi meu amor embebido de esperas
Capaz de trazer-te e manter-te ao meu lado.

Talvez uma fuga devesse ao pecado
De amar-te qual deusa, ao invés do que eras:
Mulher, só mulher, a trazer primaveras
Às neves do outono em que fui mergulhado.

Bem sei que ninguém pode dar-me o que deste,
Nem pode negar-te tal qual o fizeste
No instante que dizes a vida recua...

Se voltas agora, e os meus beijos preferes,
Verás que não tive, das outras mulheres,
O amor que me deste ao dizeres: sou tua! ...
(VASQUES FILHO)

Dodecassilábicos alexandrinos compõem, ainda, a poesia de Vasques Filho, mormente no esquema clássico ou francês, de que se utilizaram Olavo Bilac, Raimundo Correia, Alberto de Oliveira, Francisca Júlia, Vicente de Carvalho e outros parnasianos patriais e de França, ocorrente com este verso de Os Cisnes, do canindeense Cruz Filho, reproduzido em versão francesa pelo poeta Henri Allorge (1878-1938) – Ao longo do juncal que implexo e denso avança, com ictos na sexta e na décima segunda sílabas, semelhantes à seguinte estrofe, inserta em Folhas Mortas:

História de um Felá

Milhares de felás, centenas de milhares
Jungidos, sol a sol, um séquito precito,
De martelo na mão vão cortando o gravito,
Dando à pedra, ao cinzel, formas retangulares.
(VASQUES FILHO).



5.1 DOMÍNIO DA LÍNGUA E DA ESCRITA


Estes são poucos exemplos, apenas com escopo testemunhal, dos recursos aplicados por Vasques Filho para tessitura da sua belíssima poesia. Seria fastidioso enumerar todos os casos, a não ser de estudo, em apreciação para defesa acadêmica, exempli gratia.

Não custa, todavia, exprimir novamente a ideia de que seus versos são ricos de inspiração, do mais encerrado d’alma, opulentos nas modalidades que tomaram, mercê do domínio que o Autor detém a respeito das maneiras consagradas de versificar, dos expedientes vernaculísticos empregados, por via de grande quantidade de estratégias estilísticas e manifestações indiretas, mediante figuras e tropos – metáforas, síncopes, hipérboles, prosopopeias, hipérbatos, eufemismos, aliterações – e tudo de que a Língua dispõe para demonstração estética dos gêneros distribuídos na sua produção.

Sem pretender enfarar o leitor, chamo atenção para o variegado uso de versos, estrofes, rimas e poemas – baladas, ditirambos, églogas, nênias et reliqua – no curso de todo o seu metro, a este emprestando saber de erudição e agrado, na língua, no conhecimento como um todo e na revelação da sua admiranda escolaridade métrica.

Em Para uma Escrava (que Pertenceu a Dario) – 6 – parte do Cancioneiro de Alexandre, Vasques Filho recorre, por exemplo, a estrofes trísticas (pouco comuns) para compor alguns poemas, sendo que os quatro conjuntos trísticos (mais popularmente conhecidos como tercetos) não configuram a grade petrarquiana do soneto, confeiçoado com dois quartetos e dois trísticos:


Melhor que saiba logo sátrapa covarde,
Julgando-me agradar, deu asilo a Dario,
E, pérfido, depois, mandou matá-lo à tarde...

E eu que sempre puni quem usa tais processos
Pois que abomino o crime, o assassinato frio,
Mandei trazer-lhe o corpo e fiz prender a Bessus!

... Agora vai, mulher, chorar o teu rei morto!
Que as lágrimas de dor te sirvam de conforto,
Que o rei não merecia esse amor acendrado!

Quando teu rei baixar ao seu jazigo,
Liberta, escolherá se queres vir comigo
Ou ficar para sempre a chorar o passado!

Relativamente ao emprego de tropos, Vasques Filho praticou, no poema representado pela estância sequente, entre outros recursos figurais, a exagerada modalidade aliterante [exercitada por João da Cruz e Sousa (1861-1898) e, bem mais recuadamente, por Garcia de Resende (1470? – 1536), no Cancioneiro Geral], de lata aplicação, hoje, na poesia-processo, em diversas tendências das composições concretistas, como, por exemplo, em Pedro Henrique Saraiva Leão, Rogério Bessa e José Alcides Pinto.

Quiçá tenha sido homenagem àqueles mestres de ontem e de anteontem. Eis os versos aliterantes:

Verdes vales, vergéis, vinhedos, veigas, vargas,
Veredas vicinais de vedras vilas vimos,
Da velha Média empós de cavalgadas largas,
semelhantes a
Forte, fiel, façanhoso
Fazendo feitos famosos.
                               (GARCIA DE RESENDE)

e

Vozes veladas, veludosas vozes.
(CRUZ E SOUSA).

Cumpre-me evidenciar, por fim, o escorreito português do Poeta, em cujo estilo elegante tece a obra, o que demonstra, à saciedade, haver sido uma pessoa ilustrada e profundamente respeitosa à norma culta, fato difícil de ser observado atualmente, quando se empregam, ab hoc et ab hac, os neologismos de malformação, a frase feita, chavões e outros dislates, que tanto subtraem o valor de autores e escritos, quanto concedem prosseguimento à mesmice das elocuções.



REFERÊNCIAS


AZEVEDO, Sânzio de. O Soneto Moderno. In: Poesia de todo o Tempo. Fortaleza: Edições Clã, 1970, pp. 63-68.

AZEVEDO, Sânzio de. Dez Ensaios de Literatura Cearense. Fortaleza: Edições UFC, 1985. 132 p.

AZEVEDO, Sânzio. Para uma Teoria do Verso. Fortaleza: Edições UFC, 1997. 228 p.

BARRETO, J. Anchieta E.; MESQUITA, Vianney. A Escrita Acadêmica – Acertos e Desacertos. Fortaleza: Casa de José de Alencar – Universidade Federal do Ceará, 1998, 200p.

GIRÃO, Raimundo: SOUSA, Maria da Conceição. Dicionário da Literatura Cearense. Fortaleza: Imprensa Oficial do Estado do Ceará, 1987. 234p.

LYRA, Pedro. Utiludismo – a Socialidade da Arte. 2.ed. Fortaleza: Edições UFC, 1982.

MESQUITA, Vianney. Martins Filho e o Poeta da Vila do Espírito Santo. In: Resgate de Ideias. Fortaleza: Casa de José de Alencar – UFC, 1996. 192 p.

VASQUES FILHO, Santiago. Bronzes e Cristais (Poesias). Fortaleza: Imprensa Oficial do Estado, 1975.

VASQUES FILHO, Santiago. Folhas Mortas. (edição limitada, caseira). Vitória/Rio de Janeiro:Academia Espirito-Santense de Letras/Academia Brasileira de Literatura, 1985. 158p.


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