VALEU BOI!
Reginaldo Vasconcelos*
O Supremo Tribunal Federal, há poucos dias,
proibiu a prática da vaquejada no Brasil. A decisão judicial radical se
fundamenta na defesa da incolumidade física e do bem-estar do gado vacum
utilizado nesse tipo de certame, em que, a cada lance, dois cavaleiros
perseguem uma rês para que um deles, de sobre o cavalo, a tome pela cauda e
tracione para frente e para o lado, provocando a sua queda.
Os que discordam da medida, entre os
praticantes da vaquejada no Nordeste brasileiro, que foram em massa acampar em Brasília, e os representantes dos estados
nordestinos no Congresso Nacional, alegam que a proibição é absurda em razão
das raízes culturais da vaquejada e das implicações socioeconômicas dessa
atividade no semiárido brasileiro. Afirmam também que regulamentos modernos
protegem de todo sofrimento os animais utilizados.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg-4r5jF3jmy61KtQTJPvK4vesqpzzH-B7mT3RybAWpo3hIFNALvVrq61uxocRIi5ISkG0AVSt1v47lp71TgJmAkfa1Wai2Qz1aJkPSj72l2xbr0c38e920g8o6ig1XTLWx7hdZcLr9Lf8Y/s200/VAQUEJADA+III.jpg)
No meu livro de memórias denominado
“Personagem”, ao tratar dos cantadores de viola eu refiro de passagem à
vaquejada tradicional que conheci, como se vê no trecho abaixo:
“Também estava no ar o
som meloso da viola – tan-tin, tan-tan; tan-tin, tan-tan – acompanhando a voz
fanhosa do repentista. Não sei exatamente onde
se ouviam os cantadores – talvez no rádio, quem sabe na feira, certamente na
sonorização das vaquejadas – alto-falante sobre uma vara fincada no chão,
microfone do matuto palrador envolvido em um lenço, enquanto ele anunciava as
duplas de vaqueiros encourados, ouvindo-se sempre ao fundo o trinado da viola.”
Hoje a vaquejada é um “esporte” milionário,
restrito aos ricos nordestinos que criam cavalos de raça americana e contratam
peões que se dizem vaqueiros, porém não lidam com boiadas extensivas, não
campeiam bois rebeldes espalhados pelas matas, mas lidam somente com gado
doméstico e manso, transportado em caminhões de um ponto a outro dos estados
nordestinos onde os eventos acontecem.
Por séculos a vaqueirice nordestina era
meio uma profissão romântica, e meio como um desígnio honroso privativo dos
mais fortes, dos mais corajosos, dos mais respeitados, amantes do cavalo e da
boiada, que despontavam na prole sertaneja quando desde a infância demonstravam
a vocação irresistível pela mítica atividade. Concorriam entre si nas proezas
intimoratas pelas matas espinhentas, nas quais nem sempre ficavam indenes, em
que desviar-se da morte era o troféu diário.
A vaquejada moderna é uma adaptação dos
rodeios de origem estadunidense, em que cowboys
profissionais ganham fortunas para arriscar a vida sobre touros furiosos, e a
música que hoje embala esse “esporte” brasileiro – o forró moderno e o moderno
sertanejo – também são imitações do norte-americano country song, com muito pouca relação com o cancioneiro nordestino.
E, em vez da indumentária de couro cru dos
vaqueiros antigos – os chapéus, os gibões, as alpercatas – os praticantes da
vaquejada de hoje em dia usam botas e chapéus característicos da cultura
faroeste.
Mas a questão de fundo não é a importância
cultural nem a positiva repercussão econômica que a vaquejada possa ter, pois
se o critério fosse esse se teria que regularizar o uso, a produção e o
comércio de ervas e de drogas viciantes, que, mesmo proibidas, movimentam
fortunas, e seu uso tem origem nas raízes culturais de antigos povos.
A proibição da vaquejada teve fundamento no
suposto maltrato que sofreriam os animais utilizados, de modo que somente isso
interessa discutir. E tem que ser uma discussão filosófica, com base analógica
na ética que norteia a humanidade, pois não há como consultar bois e vacas
sobre se sofrem, e qual a dimensão do sofrimento.
Não. Bois e vacas não sofrem maus tratos ao
participar de vaquejadas. O martírio animal ocorre quando este sente dor, fome,
sede, ferimento, medo intenso, privações e tratamentos que atentem contra os
seus instintos naturais, relacionados à busca do bem-estar físico e da
preservação de sua espécie. Na vaquejada a rês exercita apenas o seu potencial
de fuga, que lhe é instintivo, e em seguida ela cai na areia frouxa, depois
levanta e sai andando.
Claro que, eventualmente, uma vaca sofre
uma lesão durante a queda, risco a que se expõe qualquer atleta, porém essa não
é a finalidade do jogo e não ocorre com frequência. Mesmo os cavalos e os
cavaleiros também podem sofrer acidentes, o que não torna proibitiva a
atividade.
O gado de vaquejada recebe excelente
tratamento, boa alimentação, acompanhamento veterinário, e quando se tornam
muito experientes os bichos vão sendo aposentados, porque estes já não correm
muito, às vezes param, dão a volta e ficam atrás dos cavaleiros, porque já
aprenderam o jogo e então sabem frustrar os jogadores.
Sim. Quando o boi se torna experiente no jogo,
e passa a dar olé nos dois vaqueiros, ele perde o valor atlético e está
condenado ao matadouro, aliás, um destino canhestro do gado que o Supremo
Tribunal não se abalançaria a proibir, contra os apreciadores de churrasco.
Sim, quando os promotores de vaquejadas
anunciam o seu evento costumam asseverar que a corrida dos vaqueiros será
contra bois “Mobral”, o que valoriza muito o certame, pois esses animais “analfabetos”
na astúcia dos seus perseguidores são mais fáceis de derrubar, para que o vaqueiro vencedor possa ganhar o prêmio – geralmente uma camionete luxuosa – quando o
locutor repete o anúncio, que corresponde ao gol do futebol: “Valeu Boi!”.
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