sábado, 29 de outubro de 2016

CRÔNICA - Valeu Boi! (RV)


VALEU BOI!
 Reginaldo Vasconcelos*

O Supremo Tribunal Federal, há poucos dias, proibiu a prática da vaquejada no Brasil. A decisão judicial radical se fundamenta na defesa da incolumidade física e do bem-estar do gado vacum utilizado nesse tipo de certame, em que, a cada lance, dois cavaleiros perseguem uma rês para que um deles, de sobre o cavalo, a tome pela cauda e tracione para frente e para o lado, provocando a sua queda.

Os que discordam da medida, entre os praticantes da vaquejada no Nordeste brasileiro, que foram em massa acampar em Brasília, e os representantes dos estados nordestinos no Congresso Nacional, alegam que a proibição é absurda em razão das raízes culturais da vaquejada e das implicações socioeconômicas dessa atividade no semiárido brasileiro. Afirmam também que regulamentos modernos protegem de todo sofrimento os animais utilizados.

Bem, eu conheci a vaquejada original, forma de diversão e de exibição da habilidade profissional dos antigos e autênticos vaqueiros, no campeio e na contenção de reses brabas, pelas extensões sáfaras e agressivas da caatinga, sobre os seus cavalinhos sertanejos, descendentes dos que vieram nas caravelas portuguesas.

No meu livro de memórias denominado “Personagem”, ao tratar dos cantadores de viola eu refiro de passagem à vaquejada tradicional que conheci, como se vê no trecho abaixo:
 
“Também estava no ar o som meloso da viola – tan-tin, tan-tan; tan-tin, tan-tan – acompanhando a voz fanhosa do repentista. Não sei exatamente onde se ouviam os cantadores – talvez no rádio, quem sabe na feira, certamente na sonorização das vaquejadas – alto-falante sobre uma vara fincada no chão, microfone do matuto palrador envolvido em um lenço, enquanto ele anunciava as duplas de vaqueiros encourados, ouvindo-se sempre ao fundo o trinado da viola.”

Hoje a vaquejada é um “esporte” milionário, restrito aos ricos nordestinos que criam cavalos de raça americana e contratam peões que se dizem vaqueiros, porém não lidam com boiadas extensivas, não campeiam bois rebeldes espalhados pelas matas, mas lidam somente com gado doméstico e manso, transportado em caminhões de um ponto a outro dos estados nordestinos onde os eventos acontecem.

Por séculos a vaqueirice nordestina era meio uma profissão romântica, e meio como um desígnio honroso privativo dos mais fortes, dos mais corajosos, dos mais respeitados, amantes do cavalo e da boiada, que despontavam na prole sertaneja quando desde a infância demonstravam a vocação irresistível pela mítica atividade. Concorriam entre si nas proezas intimoratas pelas matas espinhentas, nas quais nem sempre ficavam indenes, em que desviar-se da morte era o troféu diário.

A vaquejada moderna é uma adaptação dos rodeios de origem estadunidense, em que cowboys profissionais ganham fortunas para arriscar a vida sobre touros furiosos, e a música que hoje embala esse “esporte” brasileiro – o forró moderno e o moderno sertanejo – também são imitações do norte-americano country song, com muito pouca relação com o cancioneiro nordestino.

E, em vez da indumentária de couro cru dos vaqueiros antigos – os chapéus, os gibões, as alpercatas – os praticantes da vaquejada de hoje em dia usam botas e chapéus característicos da cultura faroeste.

Mas a questão de fundo não é a importância cultural nem a positiva repercussão econômica que a vaquejada possa ter, pois se o critério fosse esse se teria que regularizar o uso, a produção e o comércio de ervas e de drogas viciantes, que, mesmo proibidas, movimentam fortunas, e seu uso tem origem nas raízes culturais de antigos povos.

A proibição da vaquejada teve fundamento no suposto maltrato que sofreriam os animais utilizados, de modo que somente isso interessa discutir. E tem que ser uma discussão filosófica, com base analógica na ética que norteia a humanidade, pois não há como consultar bois e vacas sobre se sofrem, e qual a dimensão do sofrimento.

Não. Bois e vacas não sofrem maus tratos ao participar de vaquejadas. O martírio animal ocorre quando este sente dor, fome, sede, ferimento, medo intenso, privações e tratamentos que atentem contra os seus instintos naturais, relacionados à busca do bem-estar físico e da preservação de sua espécie. Na vaquejada a rês exercita apenas o seu potencial de fuga, que lhe é instintivo, e em seguida ela cai na areia frouxa, depois levanta e sai andando.

Claro que, eventualmente, uma vaca sofre uma lesão durante a queda, risco a que se expõe qualquer atleta, porém essa não é a finalidade do jogo e não ocorre com frequência. Mesmo os cavalos e os cavaleiros também podem sofrer acidentes, o que não torna proibitiva a atividade.

O gado de vaquejada recebe excelente tratamento, boa alimentação, acompanhamento veterinário, e quando se tornam muito experientes os bichos vão sendo aposentados, porque estes já não correm muito, às vezes param, dão a volta e ficam atrás dos cavaleiros, porque já aprenderam o jogo e então sabem frustrar os jogadores.

Sim. Quando o boi se torna experiente no jogo, e passa a dar olé nos dois vaqueiros, ele perde o valor atlético e está condenado ao matadouro, aliás, um destino canhestro do gado que o Supremo Tribunal não se abalançaria a proibir, contra os apreciadores de churrasco.

Sim, quando os promotores de vaquejadas anunciam o seu evento costumam asseverar que a corrida dos vaqueiros será contra bois “Mobral”, o que valoriza muito o certame, pois esses animais “analfabetos” na astúcia dos seus perseguidores são mais fáceis de derrubar, para que o vaqueiro vencedor possa ganhar o prêmio  geralmente uma camionete luxuosa  quando o locutor repete o anúncio, que corresponde ao gol do futebol: “Valeu Boi!”.

       

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