VALEU BOI!
Reginaldo Vasconcelos*
O Supremo Tribunal Federal, há poucos dias,
proibiu a prática da vaquejada no Brasil. A decisão judicial radical se
fundamenta na defesa da incolumidade física e do bem-estar do gado vacum
utilizado nesse tipo de certame, em que, a cada lance, dois cavaleiros
perseguem uma rês para que um deles, de sobre o cavalo, a tome pela cauda e
tracione para frente e para o lado, provocando a sua queda.
Os que discordam da medida, entre os
praticantes da vaquejada no Nordeste brasileiro, que foram em massa acampar em Brasília, e os representantes dos estados
nordestinos no Congresso Nacional, alegam que a proibição é absurda em razão
das raízes culturais da vaquejada e das implicações socioeconômicas dessa
atividade no semiárido brasileiro. Afirmam também que regulamentos modernos
protegem de todo sofrimento os animais utilizados.
Bem, eu conheci a vaquejada original, forma
de diversão e de exibição da habilidade profissional dos antigos e autênticos vaqueiros,
no campeio e na contenção de reses brabas, pelas extensões sáfaras e agressivas
da caatinga, sobre os seus cavalinhos sertanejos, descendentes dos que vieram
nas caravelas portuguesas.
No meu livro de memórias denominado
“Personagem”, ao tratar dos cantadores de viola eu refiro de passagem à
vaquejada tradicional que conheci, como se vê no trecho abaixo:
“Também estava no ar o
som meloso da viola – tan-tin, tan-tan; tan-tin, tan-tan – acompanhando a voz
fanhosa do repentista. Não sei exatamente onde
se ouviam os cantadores – talvez no rádio, quem sabe na feira, certamente na
sonorização das vaquejadas – alto-falante sobre uma vara fincada no chão,
microfone do matuto palrador envolvido em um lenço, enquanto ele anunciava as
duplas de vaqueiros encourados, ouvindo-se sempre ao fundo o trinado da viola.”
Hoje a vaquejada é um “esporte” milionário,
restrito aos ricos nordestinos que criam cavalos de raça americana e contratam
peões que se dizem vaqueiros, porém não lidam com boiadas extensivas, não
campeiam bois rebeldes espalhados pelas matas, mas lidam somente com gado
doméstico e manso, transportado em caminhões de um ponto a outro dos estados
nordestinos onde os eventos acontecem.
Por séculos a vaqueirice nordestina era
meio uma profissão romântica, e meio como um desígnio honroso privativo dos
mais fortes, dos mais corajosos, dos mais respeitados, amantes do cavalo e da
boiada, que despontavam na prole sertaneja quando desde a infância demonstravam
a vocação irresistível pela mítica atividade. Concorriam entre si nas proezas
intimoratas pelas matas espinhentas, nas quais nem sempre ficavam indenes, em
que desviar-se da morte era o troféu diário.
A vaquejada moderna é uma adaptação dos
rodeios de origem estadunidense, em que cowboys
profissionais ganham fortunas para arriscar a vida sobre touros furiosos, e a
música que hoje embala esse “esporte” brasileiro – o forró moderno e o moderno
sertanejo – também são imitações do norte-americano country song, com muito pouca relação com o cancioneiro nordestino.
E, em vez da indumentária de couro cru dos
vaqueiros antigos – os chapéus, os gibões, as alpercatas – os praticantes da
vaquejada de hoje em dia usam botas e chapéus característicos da cultura
faroeste.
Mas a questão de fundo não é a importância
cultural nem a positiva repercussão econômica que a vaquejada possa ter, pois
se o critério fosse esse se teria que regularizar o uso, a produção e o
comércio de ervas e de drogas viciantes, que, mesmo proibidas, movimentam
fortunas, e seu uso tem origem nas raízes culturais de antigos povos.
A proibição da vaquejada teve fundamento no
suposto maltrato que sofreriam os animais utilizados, de modo que somente isso
interessa discutir. E tem que ser uma discussão filosófica, com base analógica
na ética que norteia a humanidade, pois não há como consultar bois e vacas
sobre se sofrem, e qual a dimensão do sofrimento.
Não. Bois e vacas não sofrem maus tratos ao
participar de vaquejadas. O martírio animal ocorre quando este sente dor, fome,
sede, ferimento, medo intenso, privações e tratamentos que atentem contra os
seus instintos naturais, relacionados à busca do bem-estar físico e da
preservação de sua espécie. Na vaquejada a rês exercita apenas o seu potencial
de fuga, que lhe é instintivo, e em seguida ela cai na areia frouxa, depois
levanta e sai andando.
Claro que, eventualmente, uma vaca sofre
uma lesão durante a queda, risco a que se expõe qualquer atleta, porém essa não
é a finalidade do jogo e não ocorre com frequência. Mesmo os cavalos e os
cavaleiros também podem sofrer acidentes, o que não torna proibitiva a
atividade.
O gado de vaquejada recebe excelente
tratamento, boa alimentação, acompanhamento veterinário, e quando se tornam
muito experientes os bichos vão sendo aposentados, porque estes já não correm
muito, às vezes param, dão a volta e ficam atrás dos cavaleiros, porque já
aprenderam o jogo e então sabem frustrar os jogadores.
Sim. Quando o boi se torna experiente no jogo,
e passa a dar olé nos dois vaqueiros, ele perde o valor atlético e está
condenado ao matadouro, aliás, um destino canhestro do gado que o Supremo
Tribunal não se abalançaria a proibir, contra os apreciadores de churrasco.
Sim, quando os promotores de vaquejadas
anunciam o seu evento costumam asseverar que a corrida dos vaqueiros será
contra bois “Mobral”, o que valoriza muito o certame, pois esses animais “analfabetos”
na astúcia dos seus perseguidores são mais fáceis de derrubar, para que o vaqueiro vencedor possa ganhar o prêmio – geralmente uma camionete luxuosa – quando o
locutor repete o anúncio, que corresponde ao gol do futebol: “Valeu Boi!”.
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