segunda-feira, 10 de outubro de 2016

CRÔNICA - Conheço Este Benfica (AM)


CONHEÇO ESTE BENFICA
Assis Martins*


Chamei de volta de meu frio leito
As memórias melhores de outra idade,
Formas vagas, que às noites, com piedade,
Se inclinam a espreitar, sobre o meu peito.
(ANTERO DE QUENTAL)
  

Aquela história de se fazer um círculo com um giz ao redor de um peru e o bichão ficar imóvel, sem tentar transpô-la, parece que é real. Acho que o destino traçou uma linha dessas, bem consistente no meu entorno, abarcando o bairro do Benfica e adjacências. Por mais que eu tenha ido trabalhar em outras plagas, haurir outros ares, vislumbrar novos horizontes, eis-me aqui, no après-midi da minha vida, transitando e convivendo ainda com o ambiente onde nasci, tornei-me adulto e me aposentei pela Universidade Federal do Ceará.

Quando a minha família se instalou-se em 1925 na Rua Tristão Gonçalves (esquina da Rua Domingos Olímpio. Hoje funciona lá uma concessionária de carros), aquilo era um areal só, longe do foco central, onde as atividades da acanhada cidade aconteciam.

Minha mãe tinha sete anos na época, mas se lembrava de tudo e sempre nos contava como era a Fortaleza que ela viveu, daí o meu interesse sempre constante sobre a Cidade e, principalmente, acerca do Benfica, sempre mais incorporado em mim.

O foco central a que aludi era um quadrilátero formado pela Av. Duque de Caxias (antigo Boulevard do Livramento), Rua Dr. João Moreira (antiga Rua da Misericórdia), Rua Tristão Gonçalves (antiga Rua do Trilho e da Lagoinha) e Rua Dom Manuel (antigo Boulevard da Conceição).

A Rua Tristão Gonçalves era mais larga do que as outras, porque por ela passava o trem da RVC que seguia na direção de Parangaba (por essa razão, chamada Rua do Trilho). Na reformada Praça Capistrano de Abreu (antiga da Lagoinha), havia duas caixas d´água para o abastecimento das locomotivas, e a chegada do trem era sempre motivo de grande movimentação. Na esquina da atual Rua Pedro Pereira, era a Parada do Chico Manuel, muito concorrida, sobretudo quando da chegada do trem procedente de Maranguape.

Minha mãe cresceu, casou, teve filhos, sempre residindo no mesmo lugar, à medida em a cidade ia crescendo e tomando forma. Eu, penúltimo filho, caçula dos homens vi muitas transformações na minha rua, que recebeu o nome de Rua Carapinima no trecho entre a Domingos Olímpio e a Av. Treze de Maio, no dia 5 de agosto de 1966.

Na minha infância nos anos de 1950, aquele trecho ainda era considerado Benfica e o ponto final dos ônibus da Empresa Severino, que explorava aquela linha, era um pouco mais adiante, depois da Igreja dos Remédios, colado com a parada dos bondes, já retirados de circulação em 1948. Tinha também um cinema, o Cine Benfica, localizado perto do prédio onde funcionou a Delegacia das Mulheres. Aquela área muita arborizada prolongava-se até a Lagoa do Tauape (que foi aterrada para a construção da Cobal e hoje tem uma praça com uma caixa d´àgua da Cagece). O seu limite era no Matadouro Modelo na Rua Marechal Deodoro (antiga Cachorra Magra).

O escritor Adolfo Caminha ambientou o seu romance A Normalista na Rua do Trilho. No enredo, uma donzela engravida e é mandada para longe, para o subúrbio, para o Benfica. Pelo contexto, dá para entender que o local para onde a indigitada moça foi era uma quinta localizada logo depois do Dispensário dos Pobres, atualmente Casa de Repouso, na esquina da Rua Padre Francisco Pinto.

Mesmo correndo o risco de tornar enfadonha esta relação com muitas datas, são relevantes alguns dados sobre a Igreja Nossa Senhora dos Remédios, importante referência do Bairro e onde participei muito das cruzadinhas nos fins de semana. Na verdade, eu só ia por causa das renhidas peladas disputadas no terreno contíguo ao demolido Hospital Myra y Lopez.

A pedra fundamental da igreja foi assentada em 8 de dezembro de 1878 por Maria Correia do Amaral, em pagamento de uma promessa feita pelo seu finado marido, o português João Antônio do Amaral. A efetiva inauguração foi no dia 14 de agosto de 1910 no terreno doado por Joaquim Álvaro Garcia. Seu primeiro pároco foi o padre Guilherme Vaessen, nome de uma escola que por muito tempo funcionou ali.

Muitos locais do Benfica continuam indeléveis na minha memória: deles ressalto o Ginásio Santa Maria, das irmãs Ferreira Lima (hoje abriga o Teatro Universitário da UFC), local dos meus primeiros namoros adolescentes e, onde, posteriormente, atuei muitas vezes como ponto nos dramas teatrais do Conjunto Teatral Cearense; o Clube General Sampaio, na esquina da Avenida da Universidade (antiga Visconde do Cauípe), dos sargentos do exército. Tinha muitos associados e uma programação muito concorrida, com festas formidáveis e grandes atrações.

Uma vez, uma brincadeira quase deu em briga. Na ocasião de uma grande festa, a nossa turma foi executar a operação favorita: pular o muro pela rua dos fundos, a Marechal Deodoro ou pela lateral da Rua Domingos Olímpio. Ora, desse lado era o depósito carioca, de material de construção e deram corda num amigo iniciante, dizendo que por lá era melhor. Ele foi, pulou o muro e caiu sobre um monte de cal. Já se imagina o auê que deu!

Hoje o Benfica é um grande pólo cultural, um ambiente universitário. Na minha infância, conheci o Benfica do futebol, com a maioria dos times sediados nas proximidades do Estádio Presidente Vargas. Além da sede do Ceará Sporting, que não é tão distante, tinha a do Fortaleza, na Rua Júlio César, onde fui muitas vezes para os jogos junto com os jogadores, que nessa época não eram celebridades.

A sede do Ferroviário era numa casa de terreno muito grande, pertencente a uma fanática torcedora, Dona Filó (hoje, nesse terreno está localizada a Biblioteca de Ciências Humanas da UFC). A da equipe do Gentilândia era na Rua Marechal Deodoro e a do Nacional, time dos Correios e Telégrafos, era na Tristão Gonçalves, confluência com a Avenida do Imperador.

Ainda hoje, quando passo no pátio interno da Reitoria, naquele local da Concha Acústica, fico pensando nos tempos em que eu transitava ali à caça de tejubinas e passarinhos. Nunca imaginei que passaria muito mais tempo no mesmo ambiente, de maneira infrutífera, caçando presas maiores, como cargos mais importantes e contracheques mais polpudos...


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