FUTURO DE PRETÉRITO
Humberto Ellery*
Este fato que irei narrar “aconteceu” no futuro, no ano de 2040.
Uma jovem senhora, ainda muito bonita, apesar da idade, assistia ao noticiário
da TV, quando teve um choque: acabara de falecer um poeta e escritor que fora
seu amigo na juventude.
Pesarosa, a passos lentos, dirigiu-se aos seus aposentos para
procurar em seus guardados uma folha de papel que nunca mais vira. Estava
ansiosa, será que o papelzinho ainda existia, ainda o acharia? Deveria ter sido
mais cuidadosa!
Enquanto caminhava começou a desfiar lentamente, como se as
saboreasse, as lembranças que brotavam muito claras em sua memória.
Meu pobre amigo, pensou, certamente já está no céu, como ele mesmo
previa sorrindo: “É claro que vou para o céu, pois todos os meus pecados eu os
cometi por muito amor, excesso de amor, nunca senti ódio ou rancor de ninguém!
Jesus irá me acolher em seus braços, com certeza”, repetia divertido, alegre,
um sorriso sempre brincando em seus lábios.
Foi seguramente meu melhor amigo, e como me amou! Foi o amigo mais
prestativo, sincero, dedicado, eu jamais encontrei igual. Mesmo depois que o
recusei, que não poderia ser sua namorada, pois o que sentia por ele era somente
amizade, ele me pediu: “Então, deixe-me ser seu amigo. Para mim já basta”. Era
divertido assistir seu esforço em disfarçar de amizade o que era na verdade um
imenso amor, uma quase irrefreável paixão, que mantinha em segredo.
Enquanto revirava suas gavetas pensou: Que tola que eu fui,
desprezar tanto amor, tanta paixão, de um homem bom, generoso, dedicado, e
ainda me divertir com seu sofrimento, seu esforço em fantasiar de amizade um
amor que eu percebia tão imenso, tão puro. Se foi meu melhor amigo, com certeza
teria sido meu melhor namorado.
“Achei!”, exclamou de repente, quase num grito de alegria. Estava
lá, no fundo da gaveta, quase esquecida, uma folha de caderno, já amarelecida pelo
tempo, dobrada em meio aos “santinhos”, terços e orações com que ele lhe
presentava regularmente. Sem nem saber por que, levou o papelzinho aos lábios e
o beijou, com uma ternura de que já não se julgava capaz. Depois, lentamente,
apertou o papelzinho de encontro aos seios, numa tentativa talvez de acalmar
seu coração, que batia fortemente, loucamente, como se quisesse pular fora do
peito.
Com as mãos trêmulas de emoção, desdobrou lentamente o papelucho,
com extremos cuidados para que não se desfizesse. Estava lá, ainda bem legível,
com sua letra grande, quase desenhada, a bonita letra de seu melhor amigo. Era
um poema que lhe dedicara quando perdeu as esperanças de tê-la como namorada.
Negou-se a colocar um título no poema, pois dizia que só o nome dela era digno
de nomeá-lo, e se assim fizesse o segredo deles viria à tona e o encanto se
desfaria.
Ajeitou os óculos e lentamente leu o poema.
Eu quis ser para ti a claridade do amanhecer,
para iluminar teus dias.
Mas tu já eras o próprio sol.
Eu quis ser para ti o cantar de passarinhos,
para encher teus dias de harmonia.
Mas tu já eras a própria música.
Eu quis ser para ti uma cesta de beijos e abraços,
para encher teus dias de ternura.
Mas tu já eras o próprio Amor.
Eu quis ser para ti as asas de um anjo,
para levar-te a voar na imensidão dos céus.
Mas tu já eras o infinito.
Agora te vejo alçar voo,
amparada em outras asas,
em busca talvez do sol, da musica, do amor, do infinito.
Mas não os maldigo,
eu os abençoo.
Que ele saiba ser para ti o Eu que eu nunca fui.
Nisso, duas lágrimas brotaram nos olhos da jovem senhora. Brilharam
puras, cristalinas, e deslizaram suavemente, mornas e sentidas, pelas faces
ainda muito bonitas da jovem senhora.
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