ARMAS E CRIMES
Rui Martinho Rodrigues*
O decreto presidencial sobre posse e porte de armas de fogo
reanimou o debate sobre o assunto. Paixão política, senso comum, pesquisas de
instituições prestigiosas, conduzidas por gente igualmente renomada, juízos
influenciados por emoções e a vontade de ser ou aparentar virtude e sabedoria
fornecem combustível para o assunto. Tentando compactar o assunto no espaço
limitado de um simples ensaio jornalístico, podemos enumerar algumas perguntas,
no estilo da maiêutica socrática.
A primeira pergunta é: pesquisas sérias, produzidas por
especialistas respeitados, no âmbito de instituições prestigiosas, podem apurar
o “saldo” positivo ou negativo de um fator que se pretende avaliar,
contabilizando só o “débito”, sem o registro do “crédito”? Lembremos que não
existe registro da violência evitada pelo efeito dissuasivo das armas. Ninguém
faz um boletim de ocorrência (que é importante fonte das estatísticas na área
criminal) por ter sacado uma arma e evitado um crime. Também não procura a
polícia para dizer que reagiu e matou o ladrão. Lembremos que só uma parcela
ínfima dos crimes são apurados no Brasil.
A segunda indagação é: a parêmia “quanto mais cabra, mais cabrito”
se aplica ao número de armas e as probabilidades de homicídio? Lembremos que a
violência letal se relaciona com um grande número de fatores e é difícil isolar
um deles. Estados cuja população é mais armada, como o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, têm menos crimes que Estados nos quais a população é menos armada, como Ceará, Rio Grande do Norte e Alagoas.
A terceira questão é: o sujeito da ação é o homem ou a arma? No
trânsito não se fala em “mortes por automóveis”, no uso de asa delta não se
fala em morte por asa delta.
Quarto quesito: a ocasião faz o ladrão? Este é pressuposto da
ocorrência de homicídios “só porque havia uma arma disponível”. O psiquiatra
forense Anthony Daniels, conhecido como Theodore Dalrymple, com mais de trinta
anos de experiência forense, diz que a maioria dos crimes havidos como decorrentes
de um momento de descontrole são apenas desculpa usada pela defesa do réu.
Mas
ainda que tais crimes sejam numerosos, qual a parcela deles no Brasil? Isto é,
se retirarmos as mortes por disputa de território, cobrança de dívida no mundo
das drogas, ciclos de vingança nas guerras de gangues, enfrentamentos entre policiais
e bandidos ou entre entre bandidos, balas perdidas, mortes decorrentes de
outros meios letais, o que sobra para os crimes ocasionais mediante o uso de
arma de fogo? Os “ladrões” ocasionais são numericamente expressivos?
Quinta dúvida: o direito à autotutela pode e deve ser abolido? Sem
meio eficaz o seu exercício será preservado?
Sexta lacuna a ser preenchida no debate: o Direito Penal deve
tipificar o crime de perigo abstrato? Caso assim proceda, o que restará do
campo da licitude?
Sétimo pedido de esclarecimento: o referendo de 2005, sobre
comércio de armas, vale para a posse e o porte? Quem herdou, recebeu de
presente ou comprou antes da consulta ficaria impedido de ter ou usar arma,
segundo a pergunta formulada no referendo? Ou o referendo pretendia legitimar
uma lei consultando matéria diversa da contida no diploma legal? Tendo sido
feita uma pergunta diversa do que seja desarmamento e tendo sido rejeitado nas
urnas, o Estatuto em questão é legítimo?
D. Quixote queria muito ser herói. Nicolau Maquiavel (1469 – 1527) disse que o importante não é ser virtuoso, mas parecer virtuoso. Por mais que
queiramos combater o mal ou aparentar virtude, não tem alguma coisa errada no
discurso desarmamentista?
COMENTÁRIO
Rui tem toda a
razão. Antes do advento da pólvora, e, por conseguinte, antes do advento da
arma de fogo, prevalecia a força física nos confrontos pessoais. As maças, os
martelos, os machados, as lanças, as espadas, eram armas pesadas, que somente
podiam ser utilizadas por homens corpulentos.
Talvez venha daí a
cultural supremacia masculina sobre as mulheres, que já sendo naturalmente
menores, não tinham compleição para o confronto físico ou para a luta armada.
Não adianta vir aqui hastear nenhum argumento feminista. Hoje as mulheres procuram se igualar aos
homens, na cultura física e nos esportes, mas até agora só conseguem competir entre
si mesmas.
Mas não só as
mulheres eram vítimas da barbárie. Os homens mais franzinos, mais velhos, ou mais solitários eram
massacrados pelos mais corpulentos ou mais numerosos. Prevalecia, portanto, a
força bruta, a lei do mais forte, da pré-história ao medievo.
Portanto, as armas
de fogo foram inventadas e são produzidas até hoje para igualar as pessoas,
para acabar com a hegemonia dos mais fortes. Sua missão primacial é a defesa,
não é o ataque. Assim, elas são dedicadas aos cidadãos de bem, e não ao
banditismo.
Então, como um
Governo que se preze negligencia um arsenal imenso nas mãos dos delinquentes, e
quer manter os cidadãos e cidadãs absolutamente inermes? E ainda vem a público
fazer o discurso dos bandidos, clamando que ninguém reaja a sua ação criminosa?
“Entreguem tudo, deixem-se roubar, seviciar,
estuprar, para não correr o risco de morrer”. Ora, então que morra a alma, a
dignidade, a honra, a justiça, o direito – e que morram fisicamente como
cordeiros – mesmo quando não reagirem, como tantas vezes acontece?
Não. Eu sou cidadão,
que tem desenvoltura suficiente para se habilitar a dirigir um automóvel pelas ruas, e quero o
“risco permitido” de promover minha autotutela, na defesa da minha família e do
meu patrimônio, utilizando os meios hábeis que o engenho humano disponibiliza ao meu
alcance. Prefiro morrer reagindo, a me entregar covardemente, como pretende o
Poder Público.
O direito à posse e
ao porte de arma de fogo não é medida de segurança pública, conforme tem dito
Bolsonaro. É apenas o exercício de direito de legítima defesa, contra injusta
agressão – embora o armamento da cidadania tenha, sim, de quebra, um efeito dissuasório
sobre a criminalidade.
A polícia não é
onipresente, de modo que o brutamonte embriagado, ou tomado de fúria, evitará
invadir a casa do vizinho (ou da
vizinha), com receito de que lá de dentro possa receber uma pinha de chumbo. É na prevenção da agressão e na atualidade do ataque injusto que a arma de defesa tem seu uso. Não em
substituição aos agentes da segurança pública.
Reginaldo Vasconcelos
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