MEMÓRIAS DO AMOR,
DE ALFA MEDEIROS
Vianney Mesquita*
Dentre todas as faculdades da alma, a memória é a mais
delicada e frágil. (BEM JONSON. (U.K., Y11.06.1572 – V06.08.1637).
Nem
todas as pessoas, evidentemente, são favorecidas com a propriedade de preservar
e trazer à evocação certas situações de consciência passadas e tudo aquilo
quanto a elas está associado.
Em
sentença lapidar, de vez em quando repetida, Napoleão Bonaparte
exprimiu: Cabeça sem memória, cidadela
sem guarnição. Entrementes, o escritor tedesco, apreciado produtor do livro
Titã e Héspero, João Paulo Frederico Richter exprimiu a memória como o único paraíso de onde não se pode ser expulso.
A
vida e a literatura estão, por conseguinte, pontilhadas de remissões a este
conceito, e não somente autores de renome em todas as línguas literárias
registaram suas lembranças e as legaram à posteridade, pois, mesmo sem ser
escritores de ofício, incontável quantidade de seres dotados desta faculdade
assinalam, à saciedade, a sua existência por intermédio da pontoação de suas
recordações, editadas em receptáculo de papel e, hoje, em suportes eletrônicos.
A
evocação, contudo, é circunstância complicada, supondo a manutenção de
expressões anteriores, sua reprodução e revivescimento, bem como a própria
localização.
A
lembrança, decerto, não depende unicamente da mudança dos elementos nervosos,
no entanto, reclama ligações dinâmicas entre estes. A associação de tais
componentes, quanto mais se repetir, tanto mais a lembrança é preservada. De
tal maneira, este – certamente – é o fenômeno explicativo de serem as evocações
mais velhas as derradeiras a desaparecer, por intermédio do fenômeno da
regressão.
Não
tenho a tenção (e isto é por demais evidente e fora de propósito) de ensaiar
nesta seara, na qual me confesso quase insipiente, pois contraposta aos meus
assuntos de estudo. Nada obsta observar, entretanto, a necessidade de a imagem
recordada se reconhecer como representando algo já conhecido. De tal maneira,
impõe-se distingui-la das situações atuais e dos registros fictícios da
fantasia, do devaneio. A lembrança explica-se pelo hábito, mas possui vezos
diferentes, conforme as diversas pessoas. Diz-se, então, memória visual,
motriz, auditiva, olfativa e memória gustativa.
Esses
componentes, rápida e laicamente concertados – e isto comprovará o leitor –
vestem feitos luva a radiante narração aunada nesses fragmentos da vida de
Maria Alfa das Chagas Medeiros, ao cobrir com magnificência uma comprida
jornada, com assento na sua lembrança e, seguramente, na memória de seus
circunstantes – filhos, irmãos, genros, netos, amigos, bisnetos e outros de sua
relação.
Não
somente são meras dissertações de coisas e fatos do seu prolongado cotidiano,
presidido pelas regras da lembrança, rusticamente expressadas por mim há pouco
e sem o preciso conhecimento de causa, mas também representa uma ária de amor à
Natureza, a Deus, à Família extensa e enorme e culta e bela, de cuja amizade
qualquer um se compraz, consoante sucede comigo.
A
Autora, mesmo em avant premier – na
sua maioria em passagens ocorridas na serra
da Meruoca e em Sobral-CE, pátria de seu nascimento – incutiu
notável sequência à narração dessas Memórias
do Amor, tanto temporal quanto temática, de modo a conferir unidade ao
conjunto de escritos, permitindo leitura aprazível e corrida, haja vista a
ordem estabelecida à exposição dos fatos e feitos da sua considerável lista de
personagens reais, sem pontos obscuros passíveis de embaraçar o consulente, os
quais, via de regra, desconstruem a intenção leitora.
Sob
o prisma da técnica literária e classificação dos temas abordados, o livro é
exemplarmente tecido, pois meditado com vagar, sem correria nem açodamento nem
precipitação, sendo ela assistida por muitas pessoas, quando da conferência de
um evento, um dado em parte olvidado, uma viagem, uma data; tudo isso de
remanso, na ronceria e serenidade...
Admirável,
também, é o cuidado verificado em relação ao desvelo elocutório e à correção gramatical,
pontos nos quais o texto é irrepreensível, com expressões vocabularmente ricas,
todavia não providas de verbiagens, circunlocuções nem volteios antiliterários.
Emolduram
faustosamente o volume depoimentos de filhos, netos, genros, nora e, salvante
lapso, até de bisnetos, todos bastante fecundos sob o
aspecto da forma e dos teores, fato indicativo do preparo intelectivo e do
estatuto cultural por todos eles conduzido. Meus emboras sinceros à
neoescritora Alfa Medeiros.
Artur da Távola era o pseudônimo profissional do culto jornalista e político carioca Paulo Alberto Moretzsonh Monteiro de Barros, falecido em 2008, meu amigo pessoal.
Reginaldo Vasconcelos
COMENTÁRIO:
Tenho sempre dito
que para mim a memória é um patrimônio precioso, de modo que os tempos idos da
minha vida não se vão delir jamais do meu presente, reverenciados que são, continuamente revisitados, revigorados pela narrativa vocal ou literária,
tratados como acervo imarcerscível do suprarreal, e não como mero devaneio de
lembranças.
O que vivi um dia
não é hoje para mim “papel queimado”, mas registro perene no bronze eterno da
existência. Os personagens de antanho estão cristalizados no tempo como foram, desimportando
o que são agora e o que não são. Quando a minha memória retrógrada se for vai a
minha alma, e eu não quero sobreviver a ela um só minuto.
Esse o tema de
entrada de Vianney Mesquita, que no artigo acima comenta o livro memorial de
Alfa Medeiros. E o mestre o faz em português escorreito, evitando
propositadamente aplicar a palavra “que”, exercício delicado de quem domina bem
o bel vernáculo. Ademais, inda utiliza formas de ortografia alternativa,
exatamente para apresentar ao leitor palavras novas, na verdade termos
veteranos do idioma, todos eles aprestados e a postos na multidão verbal dos
dicionários.
O leitor mais
cônscio do seu domínio do idioma, porém jejuno quanto a Vianney Mesquita, vai
deparar no texto com um “descontruem”, com um “registo”, com um “pontoação”, e
certamente enxergar erro onde não há. Caluda! Com Vianney não se discute a Flor
do Lácio, a última, inculta e bela.
A propósito, gosto
de lembrar que certa vez, enquanto eu estava absorto em uma tarefa burocrática
em meu birô, um colega de trabalho me veio consultar sobre uma construção
frasal ou uma expressão que lera numa publicação que tinha em mãos, e que lhe
pareceu equivocada.
Muito ocupado, sem tempo para um
melhor exame, ocorreu-me perguntar-lhe antes quem era o autor do texto em que
se continha o tal excerto. “Artur da Távola” – ele respondeu. “Então está
correto” – asseverei. Ora, quem sabe, sabe, e quem não sabe diz amém.
Artur da Távola era o pseudônimo profissional do culto jornalista e político carioca Paulo Alberto Moretzsonh Monteiro de Barros, falecido em 2008, meu amigo pessoal.
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