sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

CRÔNICA - Um Bar Com Nome de Cearense (WI)


UM BAR COM
NOME DE CEARENSE
Wilson Ibiapina*


Morando ou não no Rio, se você não frequentou, pelo menos já ouviu falar num dos bares mais famosos da cidade maravilhosa. O Antonio's surgiu em novembro de 1967 com o nome da música "Strangers In The Night". Imediatamente virou o ponto de encontro de artistas, cineastas, jornalistas, intelectuais e boêmios em geral, que movimentavam a noite do Rio.

Walter Clarck, Diretor-Geral da Globo, foi um dos maiores incentivadores do bar e restaurante. Ele garantia algumas noites repletas de globais, o que alimentava a fama. O empresário Alex Gonçalves lembra que o sucesso foi tão rápido quanto a decisão de Otto Lara Resende de trocar o nome da casa instalada na loja "C" da Avenida Bartolomeu Mitre, 297. O título da música que fazia sucesso na voz de Frank Sinatra não agradou. 

O banqueiro José Luiz Magalhães Lins, do Banco Nacional, rebatizou o restaurante de Antonio's em homenagem ao cearense Antônio Pereira, o cozinheiro preferido de Armando Nogueira, na época o todo poderoso diretor da Central Globo de Jornalismo. Os outros dois sócios do bar eram os espanhóis Manolo e Florentino. Os três viviam sob a proteção do guarda chuva do Banco Nacional. O cearense, pouco depois foi trabalhar em Nova Iorque, mas deixou seu nome batizando o recanto mais agradável da noite carioca.

Jornalista e escritor mineiro Otto Lara Resende aparecia lá quase todas as noites para a alegria geral. O pernambucano Nelson Rodrigues dizia que a grande obra de Otto Lara Resende era a conversa. “Deviam pôr um taquígrafo atrás dele e vender suas anotações em uma loja de frases". Pois foi esse frequentador assíduo que, certa noite, encontrou os fregueses tristes, parecendo todos preocupados com os rumos do regime militar que comandava o País. 

Conta o jornalista Carlos Henrique Santos que depois de alguns uísques, Otto, que nasceu com vocação para a galhofa, elevou o tom de voz e fez um verdadeiro discurso desancando a ditadura, convocando à resistência a juventude pensante ali presente (que outros chamavam de esquerda festiva). E fechou o seu pronunciamento indignado, quase aos gritos, desafiando os eventuais dedos-duros que se infiltravam no ambiente: “e, para provar que não tenho medo desses gorilas vou dizer meu nome. Podem anotar: “eu me chamo José Aparecido de Oliveira...”

Roniquito Chevallier, que perturbava a vida de todo mundo, era outro que estava lá todas as noites. Brigava e apanhava quando metia a mão no prato de comida das pessoas ou cantava as senhoras acompanhadas dos maridos. Roniquito era Ronald Wallace Carlyle de Chevalier, irmão da jornalista Scarlet Moon de Chevalier. Era amigo de juventude de Walter Clark, com quem trabalhou na TV Rio e na Globo. 

Muito culto, formado em economia e, segundo Rui Castro, inventor da palavra "aspone" (assessor de porra nenhuma). Rui acredita que Roniquito talvez tenha sido o sujeito mais sem censura da história de Ipanema. “Dizia o que pensava para qualquer um, não importava o cargo, a idade, a cor, o sexo, ou o tamanho da pessoa”. Quando ele morreu de enfarte em 1983, Carlinhos Oliveira escreveu: "Ninguém podia ser patife perto dele. Ninguém ousava". E Paulo Francis escreveu na Folha de S. Paulo: "Roniquito fazia o que não temos coragem de fazer - virar a mesa contra os horrores brasileiros.

O bar tem toda a sua história contada num livro que o jornalista paulista Mário Almeida escreveu depois de longas pesquisas. O jornalista Aramis Millarch, em matéria publicada em 1992 num jornal do Paraná, diz que o biógrafo do Antonio's dedica parte do livro ao cronista capixaba Carlinhos de Oliveira que nos anos 60 emocionava milhares de leitores do Jornal do Brasil. 

Aramis lembra que José Carlos de Oliveira, como cronista do "Caderno B" do JB, foi sem dúvida o mais folclórico e famoso de todos os fregueses do Antonio`s  de cuja varanda escrevia sua coluna e ali permanecia, às vezes, até 40 horas ininterruptas. Um dia o Antonio's foi invadido por ladrões que prenderam os fregueses no banheiro. Foi de lá que Carlinhos fez um apelo desesperado aos marginais: “Seu ladrão, leva os vales, leva os vales. Essa caixinha de charutos no caixa...”

O Antonio's foi a capela sagrada da boemia que agitava as noites do Rio nos anos 60 e 70. O cozinheiro cearense não deve ter ideia do que se passou além do seu local de trabalho E lá se vão mais de meio século.

O golpe militar de 64 tem mais de meio século. João Goulart estava na China quando Jânio Quadros renunciou em 1961. O vice retornou ao Brasil e teve que encarar um regime parlamentarista. Adotou discurso considerado de esquerda e foi derrubado em 64. Durante o regime militar, que durou até 1985, muita coisa aconteceu no País, inclusive essa historinha:

O jornalista Blanchard Girão era deputado estadual de esquerda quando estourou o golpe militar. Foi preso, e a mulher, Cleide, entrou em parafuso. Começou a correr atrás de advogados, amigos e autoridades para libertar o marido. O tempo foi passando e ela apelou até para Deus. Começou a rezar pedindo a liberdade do marido. Demorou tanto na prisão que um dia ela entrou em desespero: “Meu Deus! mande soltar meu marido. Será que você não vai ouvir as minhas preces, Senhor? Aí ela ouviu o filho de uns 8 anos acalma-la: Mãe, chore não. Deus vai lhe ouvir. Demora mesmo, mãe. O céu é muito alto”

NÃO ERA SUA VEZ
O ex-governador de São Paulo, Adhemar de Barros, aderiu ao golpe de 64 na última hora pensando em tirar proveito. Achava ele, segundo a Veja, que seria implantado um triunvirato: um general, um ministro do Supremo Tribunal Federal e um civil, que seria ele.

Acreditava que em seis meses, diante de divergências entre os três, ele seria o chefe da Nação. Dois anos depois estava cassado. Morreu em 69 de um ataque cardíaco. A revista lembra que, quatro meses depois, dois elementos da Vanguarda Armada Revolucionária roubava um cofre com 2,5 milhões de dólares que estava guardado na casa de uma amante de Adhemar, no Rio. A ação armada foi comandada por Carlos Araújo, com o apoio de retaguarda de sua companheira e namorada, Dilma Rousseff.

NÃO DE VT
Em Fortaleza, véspera do golpe, estudantes conseguem uma audiência com o governador Virgílio Távora, no Palácio da Luz. Queriam permissão para fazer o “enterro” de Lincoln Gordon. Fazendo cara de surpresa, o governador pergunta:  

– O embaixador americano morreu?

– Não, Governador, será um enterro simbólico.

– Permissão negada. No meu governo só enterramos os mortos.

NÃO DEU PARA RESISTIR
Naquela noite de 31 de março a rádio Dragão do Mar, de Fortaleza, não saiu do ar. Nazareno Albuquerque, Gamaliel Noronha e eu seguramos a programação com entrevistas e notícias que captávamos de emissoras do Rio, São Paulo, Brasília e Porto Alegre, onde estava Leonel Brizola. 

Já era dia primeiro de abril quando o operador Orlando Braga olha da varanda, no primeiro andar do prédio da rádio, na avenida do Imperador, e vê soldados do Exército desembarcando de caminhões que fechavam o quarteirão. Ele foi lá no estúdio e nos disse: “temos visita”. A rádio foi retirada do ar e alguns de nós detidos. Orlando Braga atende uma última chamada telefônica. Era um assessor do deputado Moisés Pimentel, de Brasília, pedindo para a Dragão entrar em cadeia com a Nacional, onde ele ia fazer um pronunciamento. Diga ao deputado, disse Orlando, que aqui já estamos todos na cadeia.

ÚNICA SAÍDA
Quando o país lembra o aniversário da ditadura, eu lembro o que aconteceu com Durval Aires, jornalista, poeta, compositor e amigo dos amigos. Ele era editor chefe de um jornal em Fortaleza quando foi convidado para visitar Cuba. Na volta, o golpe militar no Brasil. 

Durval vai preso, justamente por ter visitado a ilha de Fidel. Queriam saber de suas ligações com o regime, quais os planos. A mulher dele, Dona Alberice, vai visitá-lo no quartel militar, onde estava preso. Leva pijama, escova e pasta de dente. Na aflição dessa primeira visita, joga na sacola a primeira toalha que encontrou no roupeiro. Depois da visita, Durval vai abrir o pacote. Quase desmaia ao ver lá a toalha com a bandeira de Cuba, que ganhara em Havana. Foi sua preocupação nas semanas seguidas. Todo dia, mordia um pedaço da toalha, puxava os fios com os dentes, cuspia no vaso e dava descarga. Uma verdadeira operação de guerrilha. Fez isso até desmanchar a única prova material que tinha de sua visita à Ilha.


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