A SAGRAÇÃO
DA PRIMAVERA
Rui Martinho Rodrigues*
Modris Eksteins (1943 – vivo), na obra “A sagração da primavera: a
grande guerra e o nascimento da modernidade”, usou o título da peça de Igor
Stravinsky (1882 – 1971) para o estudo que elaborou sobre o primeiro conflito mundial. O espetáculo
do dramaturgo encena um rito sacrificial da Rússia, na chegada da primavera,
quando imolavam uma virgem ao Deus Sol. Encenada em Paris, a representação
foi vaiada e agredida.
Era uma nova escola de arte. Chocou o público e causou a reação violenta.
O historiador formulou uma metáfora na qual a I Guerra Mundial foi um sacrifício análogo à chegada da primavera. A estação do degelo representava a
chegada da modernidade. Uma constelação de fatores levou ao grande conflito: a
competição industrial entre as potências europeias; o fortalecimento do
nacionalismo; considerações de geopolítica e o choque resultante da chegada da
modernidade.
A política do nosso tempo envolve interesses corporativos atentos
aos rumos das reformas; o fundamentalismo das religiões civis, seculares ou
políticas, empenhadas em conquistar o poder “desinteressadamente para construir
um mundo melhor”; ambições pessoais; preocupações com garantias democráticas e
com as instituições em que se amparam; temor de desastre econômico; valores
morais e tantos outros fatores.
A mudança cultural rápida e profunda dos dias atuais, imposta pelo
moralismo laico dos que se presumem esclarecidos, usando a tribuna dos arautos
do “progresso”, sentindo-se herdeiros dos reis filósofos da República de Platão
(428/7 – 348/7 a.C.) tornou-se um fator político importante. Erradicar costumes
e tradições, inclusive ligadas aos mores, é parte do trabalho messiânico do
puritanismo aludido.
Argumentos políticos tendem a conter o germe da vontade de potência
mencionada por Friedrich Nietzsche (1844 – 1900). Lobos vestem pele de
cordeiro. Projetos de dominação apresentam-se como libertários. Intolerantes
acusam suas vítimas de praticar intolerância. A mudança cultural forçada
sacrifica valores das tradições como a virgem morta em sacrifício dedicado ao
deus Sol. A herança da presunção iluminista de superioridade moral e
intelectual confunde o campo dos valores com o domínio das ciências em sentido
estrito.
As ciências da natureza, tendo previsibilidade e sendo falseáveis,
são superiores em relação a outras formas de conhecimento, no campo dos
fenômenos naturais. A axiologia, porém, não tem compromisso com a
falseabilidade nem aptidão para vaticínios. Valores não caem quando são
descumpridos. As leis das ciências naturais não perdem validades se não forem
obedecidas pelos fatos. Valores morais não perdem validade quando são
desrespeitados.
A adjetivação pejorativa usada pelos arautos do mundo melhor,
atribuindo status de preconceito aos conceitos tradicionais,
qualificando abusivamente como fascista quem ousa discordar de seus dogmas,
estimula respostas igualmente violentas, como a peça de Stravinsky, que recebeu
ovos e tomates do público parisiense por agredir a estética tradicional do
teatro do seu tempo.
Samuel Phillips Huntington (1927 – 2008) descreveu o potencial de
conflito dos dias atuais como um choque entre civilizações, o que vale dizer,
um choque entre culturas. Foi muito criticado. Mas o terrorismo associado a um
certo tipo de islamismo corrobora com o autor citado. Jonah Goldberg
classificou o movimento que pretende dirigir a sociedade ao modo de diretores
de teatro como “fascismo de esquerda”, na obra assim intitulada. Na Física,
ação gera reação em sentido contrário e de igual intensidade. Os fenômenos
sociais não se regem por leis, mas a analogia é pertinente.
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