domingo, 23 de dezembro de 2018

CRÔNICA - O Palhaço (RV)

O PALHAÇO
Reginaldo Vasconcelos*

Estava de passagem na cidade sertaneja em que a família tem origem, sentado à mesa de uma sorveteria, na esquina da rua principal, tomando um refrigério contra a canícula da tarde que findara, quando passou pelo outro lado da calçada, descendo placidamente a rua na hora angelus, um homem usando calças frouxas até o meio das canelas, de cetim quadriculado como um tabuleiro de xadrez, vermelho e amarelo, suspensórios cruzados nas costas sobre a camiseta, sapatos longos e meiões verdes.

Aquele ponto da rua não é bem iluminado, por conta das lâmpadas amarelas, da cordilheira de sobrados que produzem sombras e da arborização frondosa. Então, como quem quer decifrar a inusitada figura que divisa, apurei a vista na direção daquele transeunte bizarro que flanava mansamente, sem chamar atenção de ninguém, e sem parecer querer fazê-lo.

Ele, que marchava de cabeça baixa, notou a minha mirada, então me olhou com simpatia, mas com seriedade, quando então percebi o nariz vermelho e a pintura característica no seu rosto. “É o palhaço...”, ele disse docemente, como a me tranquilizar, fazendo, com o polegar, sinal de positivo. Ainda meio impactado, assenti levemente com a cabeça, sem lhe responder o gesto amável.

O rapaz voltou o rosto para o chão e continuou o seu caminho, contrastando a alegria circense da sua indumentária com a tristeza do seu passo, enquanto enternecido eu o fitava pelas costas, a diminuir paulatinamente na perspectiva daquela rua antiga, exatamente onde eu mesmo aprendi a andar, há mais de meio século.

Eu sei que as cidades pequenas têm lá suas figuras emblemáticas – o prefeito, o juiz, o padre, o delegado, a prostituta rainha, o doido de rua – mas o palhaço municipal era novidade absoluta para mim.

Primeiro senti um imenso remorso de não ter correspondido efusivamente ao seu gesto amistoso – o homem grave, grisalhaz e barbicundo, que ele percebeu ser forasteiro, e certamente imaginou miudamente fosse a encarnação ou o fantasma de um dos muitos velhos do passado da cidade – e então apresentou as suas credenciais de ninguendade: “É o palhaço...”.

Depois fiquei filosofando sobre a imunidade absoluta a que os palhaços têm direito, em qualquer lugar do mundo, enchendo a vida de ledice e de brandura, somente superados pelo prestígio dos bombeiros sapadores, a categoria que mais se aproxima da classe sublime dos anjos, a salvar os inditosos e a resgatar os nossos cadáveres nos infaustos do destino. Refleti que, se todas as cidades têm seus corpos de bombeiros, deveria cada uma ter o seu palhaço oficial, que andasse pelas ruas proclamando aos visitantes que o município é feliz e o povo é de muito boa paz.



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