O LIVRO
Reginaldo
Vasconcelos*
Acabei de ler um livro que ganhei de um grande amigo,
leitura que fiz com muito vagar, algumas páginas antes de me recolher a cada
noite. Cheguei à última folha do livro na véspera do natal, e então fui alcançado por uma
nostalgia inesperada, ao devolver à indiferença da estante os inúmeros
personagens com que convivi, e os ambientes oníricos em que eles se inseriam.
Na confraternização natalina, família reunida, aquela sensação de desalento repetiu-se. Percebi que
estávamos depositando na estante da vida um elenco bem maior de benquerenças, de
tantos integrantes das gerações antigas que não foram contados desta vez.
As duas derradeiras matriarcas se foram nos últimos meses,
e então descobrimos que elas ainda detinham a representação viva da parentela mais antiga, que se vinha reduzindo a cada ano. A partida das duas
fechou o primeiro tomo da família, convertendo o que era a doce alegria da dita "noite feliz" em
taninos de saudade e de esperança.
Assim, a história real que vínhamos escrevendo havia anos terminou abruptamente entre os sinos de Noel – com final feliz, é verdade, pois o
longo roteiro da nossa vida não passou por dores e tragédias. Todos os atores que povoaram
a saga que escrevemos por meio século se retiraram do palco da vida sob aplausos efusivos, sem nenhum trauma maior, com as suas metas cumpridas e com as suas falas concluídas.
Há cinquenta anos a velha casa avoenga da Avenida Dom Manuel se
enchia de odores de baunilha, que dimanavam da cozinha, trescalando ainda o
cheiro das fornadas de peru e pernil, hálito culinário dos doces e assados que venciam o comprido corredor e atingiam a copa, de soalho marchetado com faixas de madeiras,
uma preta e outra amarela, piso que cheirava ao querosene e à cera Cachopa da
recente lustração.
Minha avó, filha de carioca e neta de inglês, se mantinha
sempre a meio metro da mesa da cozinha e a dois metros do fogão, de onde apenas
estimulava a criada para as tarefas triviais, que esta conhecia bem, enquanto a despensa somente o meu avô supria e administrava.
Mas nas festas de fim de ano, e só então, Dona Jurema
Dowsley metia literalmente a mão na massa, para espalhar farinha de trigo sobre
o mármore e elaborar os seus pasteizinhos, que
eram o único item de seu caderno de receitas, fórmula ágrafa que somente no natal ela punha em prática e que foi com ela para
o além.
Avós, pais, tios, amigos mais chegados, muitas vezes os
hóspedes vira-mundos que não faltavam na família, as respectivas consortes. Era da sala de visitas para a larga calçada que corria a cervejada, uísque para os que preferiam, algum
vinho para as mulheres, os homens discutindo os problemas do mundo em tão alto volume que pareciam estar brigando. Os meninos corríamos agitados entre a "gente-grande", excitados com a expectativa dos presentes esperados.
Sem mais os avós, desfeito o ninho original, as festivas
reuniões de família se passaram para os domínios do Tio Osiris – para
o sítio, para a fazenda – ou para os espaços da minha casa na Avenida Desembargador
Moreira. Por fim, nas últimas décadas, para o meu endereço atual, que ainda foi frequentado a cada natal por um grande elenco dos
antigos.
Mas todos os adultos daquele ambiente já se despediram
do mundo, salvo algumas mulheres, que são sempre mais longevas. A terceira
leva, a que pertenço, toma a dianteira na fila, já a páginas tantas do romance da existência, faltando poucos capítulos para alcançar a contracapa. Fechou-se um ciclo. Filhos adultos e sobrinhos, netos e sobrinhos-netos, já rascunham para o futuro um novo volume de memórias.
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