JÁDER DE CARVALHO,
POETA, JORNALISTA E INTELECTUAL
REVOLUCIONÁRIO
Márcio Catunda*
Criança ainda,
Jáder habituou-se a dividir o pão com os necessitados, a roupa com os
maltrapilhos, e o seu pouco dinheiro com os enfermos indigentes. Sofria na
própria carne a dor dos outros.
Pescador de
tarrafa, tirador de leite e aprendiz de tipógrafo, aos 14 anos trocou a sombra
dos verdes juazeiros pelas salas de aula Liceu do Ceará. Escreveu os primeiros
versos, diante das jangadas e do Farol do Mucuripe. Nas vozes de ferro da
cidade, escutava o aboio dos tangerinos e o chocalho das reses distantes.
Não cabia na
caserna de Realengo o humanista revolucionário, leitor de Máximo Gorki e
Dostoievski. A vida difícil o fez desafiar ditadores e arriscar-se a terríveis
perigos. Tinha nervos para enfrentar, impávido, ameaças de pistoleiros e lutas
corpo-a-corpo.
Fazia palestra na Liga Operária, quando duzentos soldados
integralistas entraram no recinto, disparando tiros, um dos quais atingiu-lhe,
de raspão, a cabeça. O Cabo Frota disparou oito vezes sobre sua testa e os
tiros falharam. Ao vê-lo ensanguentado, o capitão Carvalhedo perguntou-lhe o
que havia. Jáder desmascarou o algoz:
– Seu cachorro,
você manda me matar e pergunta o que há? Você não é homem para vestir a farda
que Caxias vestiu!
Os esbirros da
ditadura de Getúlio Vargas o submeteram à tortura, com lâmpada de 500 velas
sobre a cabeça, e o condenaram a 25 anos de reclusão, dos quais cumpriu mais de
dois, no quartel do Copo de Bombeiros, vizinho ao Liceu do Ceará, onde lecionou
e com seus alunos de Sociologia, fundou o Diário
do Povo.
Criticou, com
destemor, o governador Faustino de Albuquerque, que só deixava a cadeira
giratória para afundar no assento de um carro oficial. Denunciou os
contrabandistas investidos em cargos públicos e o pérfido delegado que recolhia
os objetos do roubo e enforcava os presos na calada da noite. Deplorava a
miséria, provocada pelo êxodo rural, e as agruras do trabalho insalubre e mal
remunerado.
Diluía, em humanismo
generoso, o estilo crítico e irônico, numa afetividade que preza os amigos e
elogia os bons, em nome da fraternidade. Voltou ao sertão e percorreu os
cafezais da Serra de Baturité, os canaviais do Cariri, e os desertos de
mandacaru dos Inhamuns.
Era o menino
dos tabuleiros de Quixadá que contemplava a estrada branca dos rios ao clarão
da lua. Era o cantor da saudade dos riachos mansos, do tropel dos cavalos dos
corajosos sertanejos e da mulher, que o fazia trocar a clava do bárbaro, pela
lira do menestrel.
Escreveu Delírios da Solidão, quando perdeu sua
valorosa companheira, dona Margarida Saboia de Carvalho, de ânimo imbatível, que
enfrentou, corajosamente, os tempos em que ele era preso e torturado e os
terríveis momentos das mortes prematuras dos filhos Adolfo, Rita, e Jáder
Filho, este aos vinte anos de idade, perda que o levou ao mais profundo desespero.
Recebia-me, na
casa da Rua Agapito dos Santos, de pijama e sem camisa, os pés sobre a mesa e
me contava bravuras. Com 80 anos de vigor, subia, num átimo, a escada em
caracol para buscar algum livro na biblioteca. Absolutamente otimista, irradiava
esperança na força dos seus sonhos. Era uma árvore de sombra alegre e cheia de
pássaros. Catedrático em qualquer assunto, expressava-se com sentido de humor:
– Os homens
dessa rua não gostam de mim. Por quê?
Perguntei.
– Não sei, eu
nem olho pras mulheres deles...
Dotado de
vidência, definiu o fenômeno do espiritismo como “radiunidade”. Nas tardes
imemoriais viajava, sem jamais emigrar daquela paisagem de céu espelhado nas
lagoas da alma. Sonhava com um país longínquo, de angras azuis e dias nublados como
os olhos da Amada.
Jamais
frequentou igreja, mas tinha ouvidos para a música religiosa e se deleitava com
as sonatas de Schubert, O Sol do verão simboliza a sua vida. O Aracati, qual
litania nas casuarinas, é a ressonância do seu estro telúrico. Sincero, leal e
valente, deixou seus passos nas estradas de outras vidas.
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