terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

CRÔNICA - Jáder de Carvalho (MC)


JÁDER DE CARVALHO,
POETA, JORNALISTA E INTELECTUAL REVOLUCIONÁRIO
Márcio Catunda*


Criança ainda, Jáder habituou-se a dividir o pão com os necessitados, a roupa com os maltrapilhos, e o seu pouco dinheiro com os enfermos indigentes. Sofria na própria carne a dor dos outros.

Pescador de tarrafa, tirador de leite e aprendiz de tipógrafo, aos 14 anos trocou a sombra dos verdes juazeiros pelas salas de aula Liceu do Ceará. Escreveu os primeiros versos, diante das jangadas e do Farol do Mucuripe. Nas vozes de ferro da cidade, escutava o aboio dos tangerinos e o chocalho das reses distantes.


Não cabia na caserna de Realengo o humanista revolucionário, leitor de Máximo Gorki e Dostoievski. A vida difícil o fez desafiar ditadores e arriscar-se a terríveis perigos. Tinha nervos para enfrentar, impávido, ameaças de pistoleiros e lutas corpo-a-corpo. 

Fazia palestra na Liga Operária, quando duzentos soldados integralistas entraram no recinto, disparando tiros, um dos quais atingiu-lhe, de raspão, a cabeça. O Cabo Frota disparou oito vezes sobre sua testa e os tiros falharam. Ao vê-lo ensanguentado, o capitão Carvalhedo perguntou-lhe o que havia. Jáder desmascarou o algoz:

– Seu cachorro, você manda me matar e pergunta o que há? Você não é homem para vestir a farda que Caxias vestiu!

Os esbirros da ditadura de Getúlio Vargas o submeteram à tortura, com lâmpada de 500 velas sobre a cabeça, e o condenaram a 25 anos de reclusão, dos quais cumpriu mais de dois, no quartel do Copo de Bombeiros, vizinho ao Liceu do Ceará, onde lecionou e com seus alunos de Sociologia, fundou o Diário do Povo.

Criticou, com destemor, o governador Faustino de Albuquerque, que só deixava a cadeira giratória para afundar no assento de um carro oficial. Denunciou os contrabandistas investidos em cargos públicos e o pérfido delegado que recolhia os objetos do roubo e enforcava os presos na calada da noite. Deplorava a miséria, provocada pelo êxodo rural, e as agruras do trabalho insalubre e mal remunerado.

Diluía, em humanismo generoso, o estilo crítico e irônico, numa afetividade que preza os amigos e elogia os bons, em nome da fraternidade. Voltou ao sertão e percorreu os cafezais da Serra de Baturité, os canaviais do Cariri, e os desertos de mandacaru dos Inhamuns.

Era o menino dos tabuleiros de Quixadá que contemplava a estrada branca dos rios ao clarão da lua. Era o cantor da saudade dos riachos mansos, do tropel dos cavalos dos corajosos sertanejos e da mulher, que o fazia trocar a clava do bárbaro, pela lira do menestrel.

Escreveu Delírios da Solidão, quando perdeu sua valorosa companheira, dona Margarida Saboia de Carvalho, de ânimo imbatível, que enfrentou, corajosamente, os tempos em que ele era preso e torturado e os terríveis momentos das mortes prematuras dos filhos Adolfo, Rita, e Jáder Filho, este aos vinte anos de idade, perda que o levou ao mais profundo desespero.

Recebia-me, na casa da Rua Agapito dos Santos, de pijama e sem camisa, os pés sobre a mesa e me contava bravuras. Com 80 anos de vigor, subia, num átimo, a escada em caracol para buscar algum livro na biblioteca. Absolutamente otimista, irradiava esperança na força dos seus sonhos. Era uma árvore de sombra alegre e cheia de pássaros. Catedrático em qualquer assunto, expressava-se com sentido de humor:

– Os homens dessa rua não gostam de mim.   Por quê? Perguntei.

– Não sei, eu nem olho pras mulheres deles...

Dotado de vidência, definiu o fenômeno do espiritismo como “radiunidade”. Nas tardes imemoriais viajava, sem jamais emigrar daquela paisagem de céu espelhado nas lagoas da alma. Sonhava com um país longínquo, de angras azuis e dias nublados como os olhos da Amada. 

Jamais frequentou igreja, mas tinha ouvidos para a música religiosa e se deleitava com as sonatas de Schubert, O Sol do verão simboliza a sua vida. O Aracati, qual litania nas casuarinas, é a ressonância do seu estro telúrico. Sincero, leal e valente, deixou seus passos nas estradas de outras vidas.


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