domingo, 29 de junho de 2014

ARTIGO (RMR)

DOIS PESOS E DUAS MEDIDAS
Rui Martinho Rodrigues*


Abusus non tollit usum (Provérbio latino)



O Direito consagra o princípio da legalidade dos atos administrativos, até que se prove o contrário. As autoridades gozam da prerrogativa da autoexecutoriedade, podendo implementar suas decisões sem precisar de Mandado Judicial. O Poder Executivo tem o instrumento autoritário chamado decreto autônomo (sem autorização dada por lei em sentido estrito), bastando que não onere o erário. Tudo isso representa um voto de confiança dado à administração, por necessidade da governabilidade.

O cidadão gozava, até anos recentes, da presunção de inocência, também na modalidade juris tantum. Ultimamente multiplicaram-se presunções de culpa, de responsabilidade objetiva e outras suspeitas.

A lei da palmada nega aos pais o princípio da presunção de legalidade dos seus atos, dada aos administradores públicos. Também a autoexecutoriedade é negada aos pais. Palmada agora presume-se abusiva. A negação da licitude dos atos dos pais é restrição da presunção de inocência. É desequiparação injusta em face dos agentes do Estado.

Confiança? Só para autoridade estatal. Os pais são autoridade privada. Preconceito ideológico? Talvez. Não se admite, pela nova lei, que o poder discricionário dado aos agentes do Estado seja dado ao comum dos mortais. A “República dos conselhos” (soviets, em russo) não confia nos pais, só nos dirigentes da boiada cidadã, conselhos e assemelhados. O Ministério Público e o judiciário são chamados a tutelar as famílias, sob orientação dos fuxiqueiros de todo tipo.

Agentes do Estado têm o argumento da governabilidade. Famílias não podem se tornar ingovernáveis? Pais cometem abusos contra filhos. E autoridades, jamais abusam de suas prerrogativas? São mais confiáveis que os pais? Ingenuidade ou malícia fazem tal discriminação.

Conclui-se um capítulo da judicialização das relações sociais, que vem se somar à judicialização da política. Sogras, cônjuges em disputa, filhos rebeldes e vizinhos maledicentes têm um prato cheio: denunciar os pais nos conselhos, no MP e onde mais não se sabe. O abuso de medidas do tipo inaudita altera pars, tomada por magistrado sem ouvir a parte contrária, destinada a casos excepcionalíssimos, certamente levará a muita arbitrariedade contra pais dedicados. Não presumo. Constato realidade observável nos casos de violência doméstica ajuizados.

Burocratização das relações na família e insinuação de que os burocratas, ativistas e murmuradores merecem mais confiança do que os pais é a novidade. Destruída a autoridade na escola, os frutos não são bons. Repete-se a experiência na família. O fundamento é o dogma da infalibilidade do diálogo. Criminaliza-se a palmada, sacrificando-a no altar do dogma citado. O judiciário – de agilidade duvidosa – superlotado de processos, resolverá ou agravará os problemas?

O Código Penal enquadra pais (e quaisquer pessoas) que cometam violência criminosa contra filhos. Bastaria aplicá-lo. Mas criar leis dá aparência de virtude. É lição de Maquiavel e antiga prática de fariseus.
*Rui Martinho Rodrigues
Professor e Advogado
Presidente da ACLJ
Titular de sua Cadeira de nº 10

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