O GÊNIO DA GARRAFA
Reginaldo
Vasconcelos*
Faz alguns anos, a
moça loura sertaneja teve um filho doente que o pai rico da capital não queria
alimentar. A pedido de minha filha, que fora professora de teatro da jovem mãe,
eu assumi a sua causa. Hoje o menino já vai grande e saudável, devidamente operado
de sua cardiopatia congênita pelo plano de saúde paterno, beneficiário ainda da
pensão alimentícia que o juiz manda que se lhe credite a cada mês.
Vou agora ao mesmo sertão
por outra causa e na cidade sede encontro aquele meu pequeno cliente, acompanhado
pela mãe – sua representante natural – pois os dois voltaram o morar lá. Ela
tem o grado gesto de me trazer do sítio da família uma dourada botelha de manteiga
de garrafa, como de outras vezes fizera durante o trâmite do processo. Garrafa
de litro, rolha de sabugo, o produto não se compara com o dos frascos de
manteiga oferecidos pelas gôndolas do comércio, com rótulo, endereço da
fábrica, CNPJ, químico responsável.
Os arautos da
assepsia nos diriam que este laticínio produzido com rigor industrial, que se
vende pelos mais hígidos balcões, e que se louva de “manteiga de garrafa” no rótulo
colorido, seja muito mais recomendável à saúde que aquela nata batida por mãos
caboclas numa casa campesina, a partir do leite in natura de vacas pé-duro que vadiam pelas mangas dos tabuleiros,
isentas da química de vacinas e rações. Mas eu digo que todos aqueles cuidados
higiênicos terminam por desnaturar inteiramente esse untuoso alimento matuto
que os antigos inventaram.
Chego da viagem ao
meio dia e já no café da tarde, logo depois de bater a poeira da estrada,
inauguro o presente gastronômico que me foi dado com tanta modéstia humana, mas
com tanta galhardia cultural. Destampo o vidro e o odor do conteúdo me lança em
inefável experiência sinestésica. E, quando provo o seu gosto agreste, prossigo
naquela gentil cenestesia da memória.
Vejo logo o sol do
sertão que iluminava a minha infância fugir do vasilhame rústico com o cheiro
adiposo da manteiga; nas notas de sabor ouço o tropel irresponsável dos cavalos
sem raça que se acumpliciavam conosco nas nossas travessuras de meninos, o
chocalho das vacas que pastavam no campo, o pio lânguido dos pássaros da
caatinga, a cantiga das mulheres lavandeiras que surpreendíamos às margens de
lagoas e riachos.
Degusto a enxúndia
deliciosa e sinto o hálito fresco das manhãs sertanejas, o bafejo salubre dos
currais, o sainete do leite mungido, tudo contrastando com o mormaço das
tardes, que lançava no ar quentes fragrâncias vegetais, como os vapores dos
chás medicinais das curandeiras.
O que se viveu no
passado é valioso patrimônio da memória, ao qual é sempre prazenteiro e salutar
manter acesso. A experiência se acumula, se enriquece, não se dissipa ou se
aniquila. Músicas, perfumes e sabores, são os veículos da lembrança.
Por fim, concluo que
aquele meu prêmio barato fez uma paródia com a lâmpada de Aladim, aparentemente
sem grande valor, todavia dotada de um gênio dadivoso. Poder viajar no
espaço-tempo não tem preço, e, neste caso, a nave e o combustível foram aquela
generosa garrafa de manteiga.
*Reginaldo Vasconcelos
*Reginaldo Vasconcelos
Advogado e Jornalista
Titular da Cadeira de nº 20 da ACLJ
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