Reginaldo Vasconcelos*
Não pratico mais a boemia, já faz
algum tempo. Não que tenha adquirido qualquer desapreço à frivolidade dos
botecos, aos improvisos líricos da folgança noturna, à estética feliniana das
orgias. Não. Continuo a valorizar tudo isso com o mesmo vigor, com a mesma
seriedade que devoto aos cultos e aos templos – tudo a seu tempo e modo certo.
É que hoje faleço de amigos que
valham a pena acompanhar. Muitos dos velhos companheiros estão velhos, vários
faliram, ficaram pobres de cobre ou de esperança. Outros se acovardaram às
próprias mulheres e abandonaram o gosto pelas impróprias, que sempre flutuam
nas noites de esbórnia.
Há ainda alguns que perderam a
poesia, que demitiram seus duendes, que deliram os filósofos, que vazaram da
esfera supra-real do mundanismo e caíram na senda da fé na vida eterna,
embriagados de aprumo e certeza. Estes, uma vez na pinguela mística, não voltam
mais à terra firme. Não se deve tocar neles, que vão retos e crentes, ou
escorregam para o caos.
Mas mantenho algumas sentinelas
avançadas, espiões infiltrados, infantaria do hedonismo notívago, gente que
forma nas gerações mais novas da família, a qual me traz freqüente notícia da
alegria. Um dia desses meu irmão me dizia de uma farra, de quando nela apareceu Luciano Maia, o poeta-mor do nosso
meio, já na madrugada, já na última
taberna. Vinha ébrio, mas reciclado. De certo fora em casa, se banhara, mudara
de roupa, beijara a mulher adormecida, e partira para um segundo, quem sabe
terceiro turno de recreio.
Contou-me o informante que o vate
boêmio, solitário, incorporou-se à sua roda, elogiou o assunto, impôs uma dose
de vinho do Porto a uma das moças da mesa, com delicadeza irresistível. No fim da tertúlia entregou a carteira a um
do grupo e pediu lhe pagasse a conta, e que lhe apontasse o automóvel, que não
lembrava onde deixara.
Meu irmão, que me relatava o
ocorrido, não anotara o autor da frase, mas apenas que o poeta a atribuía a uma
famosa poetisa, sem contudo acrescentar em que contexto aquele período se
inseria. Mas tanto fazia. Não interessava a razão da denúncia, porque o seu encanto
está na fórmula – o ferimento, o instrumento, o lugar da lesão, o autor do
gesto.
Viajei ao Rio de Janeiro logo em
seguida, para encontrar Artur da Távola, levando comigo aquela oração,
contagiado pela magia de seus termos, pela forma hipnótica daquela metáfora e o
seu lamento: a mulher ferida, a delicadeza do rosto, a rudeza da arma, o
prestígio do agressor.
Em Copacabana, com um tio poeta que
me hospedava em sua casa, caminhando na rua, no vagar de seus passos, entre uma
farmácia e um Banco, uma quitanda e uma banca de revistas, transmiti-lhe aquele
dístico mágico. “A TÁBUA DE DEUS FERIU MEU ROSTO!”.
No outro dia, já com Artur da Távola, quando conversávamos sobre a vida, entre rolinhos primavera do melhor chinês do
Rio, no mesmo bairro carioca, repassei-lhe aquela frase poética colhida na
noite cearense. “Adélia Prado!” – ele logo identificou a autoria. Então lembrei
que a mesma Adélia, em um outro poema, fala do Criador em outro verso, menos
queixoso, mais resignado: “Às vezes Deus me tira a poesia: eu olho pedra, e
vejo pedra mesmo”.
Da janela do restaurante víamos o mar. Távola então concluiu a conversa, respondendo enfim à primeira pergunta que eu lhe fizera àquele dia, e que até ali ele deixara no ar, sobre o que preferia mesmo ser, entre tantos títulos que detém: “Sou poeta. Sinto-me poeta. É isso que sou”.
NE: Crônica escrita em 2006. Artur da Távola faleceu em 2008
Da janela do restaurante víamos o mar. Távola então concluiu a conversa, respondendo enfim à primeira pergunta que eu lhe fizera àquele dia, e que até ali ele deixara no ar, sobre o que preferia mesmo ser, entre tantos títulos que detém: “Sou poeta. Sinto-me poeta. É isso que sou”.
NE: Crônica escrita em 2006. Artur da Távola faleceu em 2008
*Reginaldo
Vasconcelos
Advogado
e Jornalista
Titular
da Cadeira de nº 20 da ACLJ
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