terça-feira, 21 de janeiro de 2020

CRÔNICA - O Homem Só (RV)


O HOMEM SÓ
Reginaldo Vasconcelos*


O homem viaja sozinho, e a estrada é fêmea. Coleante, viva, a estrada evolui na paisagem incitando os humores, fazendo revolverem os fluídos do desejo.

As venus que desfilam pelos shoppings, as sereias seminuas que enxameiam pelas praias, todas elas não superam o interesse que desperta a rara mulher que a estrada tem na margem, às vezes caboclinha miserável em suas chitas pobres, outras vezes prostituta industriada nos róseos e amarelos, visgo para os olhos cansados dos caminhoneiros.

Mas o homem que viaja por acaso não esperava o encanto mágico, a hipnose ofídica das fêmeas hermas. Ele mesmo descobre súbito que está só no automóvel, de uma solidão descortinada, de uma simesmisse sedenta e latejante, que toma vulto a cada quilômetro de silêncio e lonjuras.

Na ponta da estrada o homem encontra o seu destino, a cidade estranha, que é sempre de trato cordial, mas hostil em sua intimidade. Os populares prestimosos, o comércio sorridente, o hotel confortável, mas as mulheres, por mais ávidas ensimesmas, não contemplam nem de longe as urgências afetivas do forasteiro.

Elas interpõem às novas relações todas as formalidades do protocolo, todas as pacientes regras lapidares da sedução, todos os talvezes entrevistos no desafio da conquista, numa maçante releitura.

O viajante solitário, no entanto, não tem tempo, ponderando entre labaredas. Tem a noite pela frente, sem amizades frescas que lhe tragam novas anedotas, sem amigos velhos que lhe preencham os sentidos.

Exasperado como quem perdeu a própria sombra, o homem rende-se enfim ao furor másculo, contra os pudores e princípios, e se lança à procura do amor profissional, por mais barato seja na essência, por mais custoso ao bolso. Uma vez exilado de suas posturas costumeiras, vai temeroso das deformações morais que devem ter as marafonas, já que das mazelas físicas ele imagina ter defesas. A esta altura da vida o homem descobre, só então, que valioso servido de ancoragem essas criaturas prestam às vezes a quem esteja à deriva no Cosmo.

As mulheres de ninguém são várias nos rostos, nos modos, nos preços, e aquele solitário encontra a melhor sorte. O prostíbulo verte mel sobre o seu peito sedento, evocando aquela reflexão madrinha que o Chico Buarque pôs em música, fazendo cruzarem pela mesma rua a feira e a prostituta – a santa e o monstro podem vir de qualquer lado.

A cafetina quer saber se a “mercadoria” agrada. “Ontem, um homem importante que veio à festa da cidade gostou de mim”; ela mesma, vaidosa, mercantiliza-se. Diante da mulher coisificada para o mérito sem honra, a besta recua, embora não arrede.

O homem experiente vai tentar colar os cacos, para recompor no diálogo aquele ser materno-filial, antes de qualquer afago, que não lhe servem os agrados que degradam. Bela e meiga, como saída da Pasárgada de Bandeira, ela mal supera vinte anos.

No outro dia o homem sozinho foge de volta pela estrada, antes que a obra improvisada no amor tópico se transforme em descabido afeto crônico. Leva consigo uma nova saudade e uma lição: Deus deve prover os passarinhos e os peixes do oceano.



COMENTÁRIO

Ai, meu Deus, que crônica poética mais linda!!! Você tem o dom de contar histórias que nos fazem apaixonados, pela beleza das palavras, em construção de frases arquitetadas pela alma! Como pode tanta poesia numa história!? Sou sua fã incondicional! E, sim, estavas do outro lado da história de minha alma. Do lado de Danton.

Karla Karenina


2 comentários:

  1. Aí, meu Deus, que crônica poética mais linda!!! Você tem o dom de contar histórias que nos faz apaixonados pela beleza das palavras em construções de frases arquitetadas pela alma! Como pode tanta poesia numa história? Sou sua fã incondicional! E, sim, estavas do outro lado da história de minha alma. Do lado de Danton.

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  2. Que crônica linda, um conjunto de palavras que faz o ser humana viajar sem sair de seu lugar.

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