A LINGUAGEM
E A SOCIEDADE
Rui Martinho Rodrigues*
A linguagem é um fenômeno central da sociabilidade e do
desenvolvimento cognitivo, situada no âmago da hominização, é parte da
filogênese. Peter Burke (1937 – vivo), debruçando-se sobre a história social da
linguagem, escreveu “A arte da conversação”, assinalando a variedade dos interlocutores,
do meio social e dos assuntos tratados.
A linguagem e as formas de interagir variam conforme se escreva um
tratado científico, converse informalmente na intimidade ou nas relações
formais e outros aspectos. Quem escreve uma tese deve ser parcimonioso na
adjetivação. Quem faz propaganda, tende a afastar-se da observância do rigor
lógico e da fidelidade aos aspectos objetivos e recorre aos adjetivos.
É comum a queixa de que os ânimos estão exacerbados e os conflitos
espreitam as diversas formas de interação. Conflito é pretensão resistida. As
redes sociais são lembradas como origem dos confrontos. A presença dos
interlocutores poderia inibir a agressividade, explicando os embates virtuais
pela ausência física das partes.
Muitos, porém, são os conflitos presenciais. A perda da civilidade;
o uso da linguagem chula; a supressão das formalidades; o relativismo
axiológico e cognitivo; a mudança cultural que banalizou os mores propiciou o
desrespeito e a agressão. Reciprocamente, a tentativa de forçar a mudança
cultural promoveu a ideia de intolerância “legítima” como forma de transformar
os costumes havidos como opressivos, na forma da exigência do que é concebido
pelos aspirantes a tutores da sociedade como correto.
O debate político, a discussão acadêmica, o diálogo informal e
todas as formas de interação tornaram-se conflitivas. A crítica é necessária ao
desenvolvimento cognitivo, ao avanço da ciência, ao exercício legítimo do múnus
público. A boa conversa deve ser uma busca da compreensão das razões do outro e
de dar a conhecer as suas próprias razões, não uma competição para consagrar um
vencedor e humilhar um suposto perdedor. É frequente, porém, ouvirmos alguém
dizer que “fulano é o tal e que ninguém ganha dele”, como se tal fosse o
objetivo de um diálogo. Interromper um debate técnico, teórico ou uma conversa
erudita dizendo “não fale mal de fulano”, referindo-se a um autor ou a uma
pessoa pública que estava sendo analisada é a decadência da educação.
Pessoas minimamente escolarizadas deveriam saber distinguir ataque
de análise crítica dos aspectos epistemológicos, históricos, sociológicos,
políticos, econômicos. É de bom alvitre não fulanizar o estudo de temas. Mas a
análise de teorias e obras de autores deve examinar os méritos e deméritos de
autores e personas públicas. Igualmente deplorável é quando o debate prossegue
contornando o exame de aspectos essenciais ao objeto de análise, como é o caso
dos indicadores que revelam a realidade factual, quando a reflexão precisa
deles, como os temas econômicos, demográficos ou ligados a educação dentre
outros. Os modos civilizados não tornam menos deplorável tal atitude.
Thomas Samuel Kuhn (1922 – 1996) considerava, com razão, os paradigmas
de ciência como incomunicáveis. Acrescente-se: agravada por fatores estranhos
aos paradigmas. A dificuldade de comunicação atual tem a contribuição da
impregnação inconsciente da sociedade por versões vulgares de paradigmas
teóricos e pela repulsa ao rigor metodológico. Os intelectuais são mais acometidos
pela cegueira dos paradigmas. O senso comum é mais aberto, mas conflitos estranhos
aos marcos teóricos debatidos podem ser a pretensão ou a resistência oculta
geradora do conflito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário