A GAZZA E A RAGAZZA
Humberto Ellery*
A Ópera La Gazza Ladra,
de Gioachino Rossini, uma das minhas preferidas, mesmo sendo
classificada como uma ópera semisséria (melodrama), traz alguns detalhes que me
encantam.
Em primeiro lugar sua Overture, uma das músicas ditas “clássicas”
de que mais gosto. Rossini era tão brilhante e rápido na arte de compor, quanto
irresponsável.
Prova disso, quando o Produtor da Ópera, já com o teatro
contratado, ingressos vendidos, tudo pronto para a estreia no dia seguinte, viu
que o gênio não havia ainda concluído a peça de abertura.
O Produtor, então, trancou-o em um quarto, com apenas um piano e
partituras em branco, sem água ou comida, e só o deixou sair quando ele passou
as partituras por debaixo da porta, o que ele fez em poucas horas.
Inacreditável (Recomendo buscarem no youtube
e entender como uma obra tão maravilhosa pôde ser composta em poucas horas)
Outra coisa interessante é o trocadilho da palavra Gazza,
como é conhecido na Itália o pássaro pega (corvídeo da família do pica-pau), e
a palavra Ragazza, que significa “menina”. Pois afinal o tema da ópera
gira em torno da garota Ninetta, seu amor por Gianetto e o roubo de um anel por
uma pega.
O autor do libreto, Giovanni Gherardini, inspirou-se na obra
La Pie Voleuse (A Pega Ladra), de Badonin d’Aubigny e
Louis-Charles Caignez, que por sua vez se inspiraram em um trágico fato real
acontecido alguns anos antes, que os artistas trataram de abrandar, invertendo
a ordem cronológica dos eventos, dando-lhe um happy end.
A história verdadeira é que, lá pelos meados do Século XVIII, una
ragazza bellissima empregou-se em uma mansão aristocrática para cumprir
serviços domésticos. Os donos da casa tinham um filho, un bel ragazzo
que logo se apaixonou pela empregada. A mãe do rapaz não aprovou aquela paixão,
mas o rapaz, apoiado pelo pai e cheio de autoridade, impôs sua vontade e
iniciou um lindo romance com a jovenzinha, que também se apaixonara pelo filho
do patrão.
A Senhora, embora reticente, acabou por aceitar a situação, uma vez
que a ragazza, além de ser linda, era uma criatura adorável, simpática,
prestativa e trabalhadora. E viveriam felizes para sempre se não tivesse
ocorrido um fato terrível, que destruiu toda aquela atmosfera de amor e beleza.
Um dia a senhora esqueceu sobre a mesa da cozinha um enorme anel de
brilhantes, que tirara por um instante enquanto lavava as mãos. Ao voltar à
cozinha para pegar a joia não mais a encontrou. A empregada rapidamente passou de
suspeita a culpada, afinal ninguém mais entrara na cozinha naquele breve espaço
de tempo, apenas a senhora e a empregada.
Para piorar-lhe a situação, ela não tinha explicação para o sumiço
da joia, apenas repetia que também vira a joia e não entendia como teria
sumido. A coitada ficou atônita, só repetia, com um fio de voz chorosa: “Não
fui eu, não fui eu, não fui eu”.
Mas o pior estava por vir. Seu namorado, seu belo e amado noivo,
segurou ternamente suas mãos e fez a pergunta fatídica: “Por que você não me
pediu, eu lhe teria dado um anel maior, mais bonito e mais caro”. Ela já não
disse mais nada, apenas olhou fixamente em seus olhos e pensou: “Meu Deus, meu
Deus, até você, amor da minha vida, está me julgando uma ladra?” Entrou então
numa depressão catatônica, numa apatia, um mutismo impenetrável. Pessoas que
tentavam falar com ela diziam que, mesmo olhando fixamente para o interlocutor,
ela parecia não os ver.
Sem se defender, sem tomar conhecimento da oferta do Burgomestre
(que era apaixonado por ela), de usar todo o seu prestígio para conseguir o perdão,
ela foi rapidamente condenada e encaminhada ao patíbulo, ao encontro do qual
caminhou serenamente, mansamente. Em suas belas feições não era possível
perceber qualquer emoção, nem tristeza, nem amargura, nem sequer medo, pois,
afinal, o patíbulo só infunde medo aos vivos, e ela já se julgava morta, seu
coração já morrera desde aquela pergunta de seu amado.
No libreto os autores antecipam o final da história para
conseguirem um happy end, que infelizmente não contemplou a bella
ragazza. Depois de executada a sentença, no dia seguinte, a senhora mandou
podar uma árvore que estava atrapalhando o acesso da cozinha ao quintal.
O lenhador que subiu na árvore para cortar os galhos, de repente
deu um grito e desceu afobada exibindo nas mãos um ninho de Pega. Dentro do
ninho pedaços de metal, cacos de vidro e o maldito anel de brilhantes. As pegas
são conhecidos por recolher e levar para os seus ninhos coisas que
brilhem.
PS. Sugiro consultar tragédia semelhante acontecida com o poeta Augusto
dos Anjos e sua paixão pela filha do vaqueiro de sua fazenda, da qual resultou
o emocionante soneto “A Árvore Da Serra”.
A ÁRVORE DA SERRA
Augusto dos Anjos
– As árvores, meu
filho, não têm alma!
E esta árvore me
serve de empecilho…
É preciso cortá-la,
pois, meu filho,
Para que eu tenha
uma velhice calma!
– Meu pai, por que
sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo
existe o mesmo brilho?!
Deus pôs alma nos
cedros… no junquilho…
Esta árvore, meu
pai, possui minha alma…
– Disse –
ajoelhou-se, numa rogativa:
“Não mate a árvore,
pai, para que eu viva!”
E quando a árvore,
olhando a pátria serra,
Caiu aos golpes do
machado bronco
O moço triste se
abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra.
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