quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

ARTIGO - Interpretações e o Caso Renan (RMR)


INTERPRETAÇÕES
E O CASO RENAN
Rui Martinho Rodrigues*


Tenho sido prestigiado com os comentários do dileto amigo Reginaldo Vasconcelos. Trata-se de grande privilégio trocar ideias com pessoa tão qualificada. Não tenho respondido, porque fatores de dispersão desviaram-me do proveitoso diálogo. 

Penitencio-me disso dando sequência ao diálogo iniciado pelo douto causídico sobre o meu artigo “Quando o certo escandaliza”, quando discorreu com brilho sobre o impedimento de pessoa que se encontre na condição de réu, quando ocupe cargo na linha de substituição da presidência da República; pontificando, ainda, sobre a concessão de liminares, enfocando o periculum in mora. Considerando ser próprio do Direito a convivência de doutrinas opostas, ouso manter a divergência com o grande causídico, valendo-me da admissibilidade de doutrinas divergentes.

O ministro Marco Aurélio não poderia conceder liminar afastando o presidente do Senado, dentre outros motivos, por falta de um perigo iminente que ameace o direito em julgamento durante o tempo em que a justiça decide a pendenga. Meu amigo Reginaldo entende que esta condição existia, alegando que o presidente da República pode subitamente precisar afastar-se ou ser afastado.

Sucede, porém, que o periculum in mora não se refere a um perigo abstrato, mas a um perigo concreto. Caso a existência de um perigo abstrato, circunscrito ao campo do meramente possível, satisfizesse ao requisito em questão, tal condição existiria sempre, pois o campo do possível é infinitamente abrangente. O impossível está mais desmoralizado a cada dia.

Um exército não entra em estado de alerta motivado pela possibilidade teórica de um ataque. O presidente Kennedy mandou que os bombardeiros nucleares decolassem, para não serem destruídos no solo, por um ataque nuclear soviético. Mandou que a marinha americana abandonasse as bases pelo mesmo motivo. A embaixada soviética nos EUA queimava papéis, para no caso de guerra tais papéis não caírem nas mãos dos americanos. Dirigentes soviéticos saiam de Moscou para escapar de um ataque nuclear. Era a chamada crise dos foguetes, de 1962, decorrente da instalação de mísseis soviéticos em Cuba.

Estas medidas eram comparáveis às “liminares”. Procuravam salvaguardar algo que poderia se perder antes que respostas a um ataque fossem dadas. Havia o periculum in mora, porque os EUA haviam decretado uma quarentena contra Cuba, anunciando que navios soviéticos só passariam se fossem revistados pelos americanos, em flagrante violação da liberdade do tráfego marítimo. Moscou anunciara que não aceitaria tal coisa. Navios soviéticos aproximavam-se da área em que seriam interceptados pela marinha dos EUA. Tudo isso eram fatos concretos. Caracterizava-se um perigo iminente. As “liminares” foram adotadas pelos dois lados.

A Argentina opunha-se à construção de Itaipu. O Exército Brasileiro preparou um plano de guerra. Previa um aumento de 30% de efetivos e a aquisição de material bélico. O Presidente Geisel vetou o projeto dizendo que não iria gastar dinheiro com uma guerra improvável. O perigo era abstrato. Não havia fato concreto. A “liminar” foi negada por não haver periculum in mora, embora fosse possível, teoricamente, uma guerra (perigo abstrato). Caso o perigo abstrato justificasse o alerta das forças armadas estas viveriam permanentemente de prontidão.

O afastamento simultâneo dos presidentes da República e da Câmara, situação necessária para que o presidente do Senado fosse convocado a substituir o chefe do Executivo, é uma possibilidade. Mas não é um perigo iminente. Os dois primeiros nomes não estavam doentes nem haviam agendado viagens. Um perigo meramente possível não é concreto, mas abstrato. O periculum in mora refere-se a uma situação iminente, concreta.

Insisto em dizer: não havia o requisito em comento, necessário à concessão de liminar.

Na interpretação extensiva ou ampliativa é o intérprete considera que o legislador disse menos do que pretendia. O presidente da República é afastado do cargo se for declarado réu. A interpretação do ministro Marco Aurélio entendeu que os eventuais substitutos também deveriam ser afastados dos respectivos cargos. Temos um caso em que o intérprete entende que o texto legal diz menos do que pretendeu o legislador, pois tal coisa não está escrita em nenhum lugar. O douto causídico Reginaldo Vasconcelos entende que não é preciso que isso esteja escrito.

Discordo porque: (i) o Direito Penal se rege pelo princípio da reserva legal. Isto é: só reconhece o que está na lei. (ii) trata-se de interpretação extensiva. A boa hermenêutica veda o uso deste tipo de interpretação in pejus. Isto é: interpretação ampliativa só é permitida para beneficiar o réu.

Outra interpretação contida na decisão que afastava o Presidente do Senado diz que se o substituto eventual não pode ocupar a Presidência da República, então não pode ocupar o cargo em que lhe confere a condição de substituto eventual. Trata-se de outra interpretação extensiva, somada à presunção de que os atributos dos cargos são indissociáveis. Não existe regra nenhuma dizendo isso.

Um profissional que sofra um acidente, ficando impossibilitado de exercer uma das funções do cargo, deverá ser aposentado ou simplesmente afastado? Não. Servidores que se tornam incapacitados para uma função devem ser aproveitados no exercício das outras atribuições do cargo. A analogia aqui é permitida, por ser in melitus. Acrescente-se que restringir direitos de um réu, sem que se tenha sequer uma condenação em primeira instância é uma violação da presunção de inocência.


O ministro Marco Aurélio sabe de tudo isso. Ele colocou o famoso “bode na sala”, para forçar o Congresso a recuar na questão dos salários de magistrados que excedem o teto constitucional. Também a matéria sobre abuso de autoridade seria moeda de troca com a liminar absurda.




COMENTÁRIO:

O periculum in mora se verifica a partir de uma situação fática, juridicamente escrutinada, que mantida no tempo, enquanto é deslindada, um bem jurídico mais relevante fica exposto a sofrer dano. Não se trata de “perigo iminente”. Trata-se de um perigo possível, pela dilação temporal.

A partir do momento em que o substituto eventual do Presidente da República se torna legalmente inapto para assumir essa função, se estabelece o perigo de que ele tenha que fazê-lo de repente, em condição ilegal. Isso não indica iminência. Indica risco temporal.  

O perigo está na ocorrência eventual dessa ilegalidade, que seria uma lesão à norma. O perigo não está entrevisto no que possa ou não ocorrer ao Presidente, a requerer substituição, porque isso é juridicamente irrelevante. A lei não se deteve nisso.

Manter Renan na função seria manter o risco. Tanto assim que ele foi mantido pelo Pleno do Tribunal... Mas, “ilegalmente” proibido de substituir o Presidente da República – aqui sim, uma proibição sem previsão legal, porém de interesse político e social.

Mas note, a decisão do Pleno reconhece o periculum in mora. Tanto que fez uma “gambiarra” jurídica, ao manter Renan, proibindo-o de eventual substituição, o que não se operou na medida liminar, pois ali não se cogitou prevenir o risco de maneira transversa, mas com base na lei processual.

Também nada têm a ver os fatos examinados com presunção de inocência, nem com interpretação in pejus ou in melitus. A norma que proíbe que um réu sente na curul presidencial não carece de interpretação, e Renan já tinha a efetiva condição de processado.

Observe ainda que a decisão liminar não deveria ter vezo penal, nem caráter de sanção punitiva, ainda que por acaso criasse para Renan um natural constrangimento. O objetivo da liminar era (ou deveria ser) proteger um bem jurídico de maior hierarquia, apodítico, incontroverso. Quando a polícia para um cidadão e lhe dá busca de armas certamente lhe causa um incômodo considerável, mas certamente não é esse o objetivo.      

Os exemplos militares descritos pelo eminente professor Rui Martinho Rodrigues trata de medidas de prevenção estratégica no advento de um conflito bélico. Não é a mesma coisa. As providencias dos presidentes e generais citados no exemplo, por seu turno, não se referem o risco entrevisto em nenhuma demora pacífica, mas em medidas urgentes de prevenção imediata.

Digamos que o tal presidente tomasse a decisão de mobilizar as tropas e destruir documentos por medida de segurança, e fosse remanchando, retardando a providência. Então poderiam os generais arguir junto a ele o princípio do periculum in mora.  

Noutro exemplo, calibrar o pneu sobressalente do automóvel antes de uma viagem é uma medida cautelar que não evoca o perigo da demora, mas apenas previne que em ocorrendo uma perfuração ou vazamento os viajantes fiquem à deriva.

Para encontrarmos uma analogia de periculum in mora, abstraindo-nos do mundo jurídico, e ficando no exemplo automotivo, poderia ele ser reclamado pela esposa contra o marido negligente que se pusesse a adiar a troca de pneus do carro da família.

Ele continua rodando com a esposa e filhos a bordo, desgastando a borracha “careca” dos pneus, com o risco de estourar a qualquer momento. O risco de enguiço neste caso não é um perigo em abstrato, mas baseado em um risco previsível, agravado pelo tempo. É perigo da demora.

Então, para mim, a medida liminar de Marco Aurélio estava tecnicamente perfeita, ainda que politicamente equivocada. Estava juridicamente fundamentada, mas a motivação tinha o vício da mágoa, e periclitava um bem jurídico bem maior, que era a aprovação de medidas salvadoras do Executivo Federal. Data venia.

Reginaldo Vasconcelos


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