INTERPRETAÇÕES
E O CASO RENAN
Rui Martinho Rodrigues*
Tenho sido prestigiado com os comentários do
dileto amigo Reginaldo Vasconcelos. Trata-se de grande privilégio trocar ideias
com pessoa tão qualificada. Não tenho respondido, porque fatores de dispersão
desviaram-me do proveitoso diálogo.
Penitencio-me disso dando sequência ao
diálogo iniciado pelo douto causídico sobre o meu artigo “Quando o certo
escandaliza”, quando discorreu com brilho sobre o impedimento de pessoa que se
encontre na condição de réu, quando ocupe cargo na linha de substituição da
presidência da República; pontificando, ainda, sobre a concessão de liminares,
enfocando o periculum in mora.
Considerando ser próprio do Direito a convivência de doutrinas opostas, ouso
manter a divergência com o grande causídico, valendo-me da admissibilidade de
doutrinas divergentes.
O ministro Marco Aurélio não poderia conceder
liminar afastando o presidente do Senado, dentre outros motivos, por falta de
um perigo iminente que ameace o
direito em julgamento durante o tempo em que a justiça decide a pendenga. Meu
amigo Reginaldo entende que esta condição existia, alegando que o presidente da
República pode subitamente precisar afastar-se ou ser afastado.
Sucede, porém, que o periculum in mora não se refere a um perigo abstrato, mas a um
perigo concreto. Caso a existência de um perigo abstrato, circunscrito ao campo
do meramente possível, satisfizesse ao requisito em questão, tal condição
existiria sempre, pois o campo do possível é infinitamente abrangente. O
impossível está mais desmoralizado a cada dia.
Um exército não entra em estado de alerta
motivado pela possibilidade teórica de um ataque. O presidente Kennedy mandou
que os bombardeiros nucleares decolassem, para não serem destruídos no solo,
por um ataque nuclear soviético. Mandou que a marinha americana abandonasse as
bases pelo mesmo motivo. A embaixada soviética nos EUA queimava papéis, para no
caso de guerra tais papéis não caírem nas mãos dos americanos. Dirigentes
soviéticos saiam de Moscou para escapar de um ataque nuclear. Era a chamada
crise dos foguetes, de 1962, decorrente da instalação de mísseis soviéticos em
Cuba.
Estas medidas eram comparáveis às “liminares”.
Procuravam salvaguardar algo que poderia se perder antes que respostas a um
ataque fossem dadas. Havia o periculum in
mora, porque os EUA haviam decretado uma quarentena contra Cuba, anunciando
que navios soviéticos só passariam se fossem revistados pelos americanos, em
flagrante violação da liberdade do tráfego marítimo. Moscou anunciara que não
aceitaria tal coisa. Navios soviéticos aproximavam-se da área em que seriam
interceptados pela marinha dos EUA. Tudo isso eram fatos concretos.
Caracterizava-se um perigo iminente. As “liminares” foram adotadas pelos dois
lados.
A Argentina opunha-se à construção de Itaipu.
O Exército Brasileiro preparou um plano de guerra. Previa um aumento de 30% de
efetivos e a aquisição de material bélico. O Presidente Geisel vetou o projeto
dizendo que não iria gastar dinheiro com uma guerra improvável. O perigo era
abstrato. Não havia fato concreto. A “liminar” foi negada por não haver periculum in mora, embora fosse
possível, teoricamente, uma guerra (perigo abstrato). Caso o perigo abstrato
justificasse o alerta das forças armadas estas viveriam permanentemente de
prontidão.
O afastamento simultâneo dos presidentes da
República e da Câmara, situação necessária para que o presidente do Senado
fosse convocado a substituir o chefe do Executivo, é uma possibilidade. Mas não
é um perigo iminente. Os dois primeiros nomes não estavam doentes nem haviam
agendado viagens. Um perigo meramente possível não é concreto, mas abstrato. O periculum in mora refere-se a uma
situação iminente, concreta.
Insisto em dizer: não havia o requisito em
comento, necessário à concessão de liminar.
Na interpretação extensiva ou ampliativa é o
intérprete considera que o legislador disse menos do que pretendia. O
presidente da República é afastado do cargo se for declarado réu. A interpretação
do ministro Marco Aurélio entendeu que os eventuais substitutos também deveriam
ser afastados dos respectivos cargos. Temos um caso em que o intérprete entende
que o texto legal diz menos do que pretendeu o legislador, pois tal coisa não
está escrita em nenhum lugar. O douto causídico Reginaldo Vasconcelos entende
que não é preciso que isso esteja escrito.
Discordo porque: (i) o Direito Penal se rege
pelo princípio da reserva legal. Isto é: só reconhece o que está na lei. (ii)
trata-se de interpretação extensiva. A boa hermenêutica veda o uso deste tipo
de interpretação in pejus. Isto é:
interpretação ampliativa só é permitida para beneficiar o réu.
Outra interpretação contida na decisão que
afastava o Presidente do Senado diz que se o substituto eventual não pode
ocupar a Presidência da República, então não pode ocupar o cargo em que lhe confere a
condição de substituto eventual. Trata-se de outra interpretação extensiva,
somada à presunção de que os atributos dos cargos são indissociáveis. Não
existe regra nenhuma dizendo isso.
Um profissional que sofra um acidente, ficando
impossibilitado de exercer uma das funções do cargo, deverá ser aposentado ou
simplesmente afastado? Não. Servidores que se tornam incapacitados para uma
função devem ser aproveitados no exercício das outras atribuições do cargo. A
analogia aqui é permitida, por ser in
melitus. Acrescente-se que restringir direitos de um réu, sem que se tenha
sequer uma condenação em primeira instância é uma violação da presunção de
inocência.
O ministro Marco Aurélio sabe de tudo isso.
Ele colocou o famoso “bode na sala”, para forçar o Congresso a recuar na
questão dos salários de magistrados que excedem o teto constitucional. Também a
matéria sobre abuso de autoridade seria moeda de troca com a liminar absurda.
COMENTÁRIO:
O periculum
in mora se verifica a partir de uma situação fática, juridicamente
escrutinada, que mantida no tempo, enquanto é deslindada, um bem jurídico mais
relevante fica exposto a sofrer dano. Não se trata de “perigo iminente”. Trata-se
de um perigo possível, pela dilação temporal.
A partir do momento em que o substituto
eventual do Presidente da República se torna legalmente inapto para assumir
essa função, se estabelece o perigo de que ele tenha que fazê-lo de repente, em
condição ilegal. Isso não indica iminência. Indica risco temporal.
O perigo está na ocorrência eventual dessa
ilegalidade, que seria uma lesão à norma. O perigo não está entrevisto no que
possa ou não ocorrer ao Presidente, a requerer substituição, porque isso é juridicamente
irrelevante. A lei não se deteve nisso.
Manter Renan na função seria manter o risco. Tanto
assim que ele foi mantido pelo Pleno do Tribunal... Mas, “ilegalmente” proibido
de substituir o Presidente da República – aqui sim, uma proibição sem previsão
legal, porém de interesse político e social.
Mas note, a decisão do Pleno reconhece o periculum in mora. Tanto que fez uma “gambiarra”
jurídica, ao manter Renan, proibindo-o de eventual substituição, o que não se operou na medida liminar, pois ali não se cogitou prevenir
o risco de maneira transversa, mas com base na lei processual.
Também nada têm a ver os fatos examinados com
presunção de inocência, nem com interpretação in pejus ou in melitus. A
norma que proíbe que um réu sente na curul presidencial não carece de interpretação,
e Renan já tinha a efetiva condição de processado.
Observe ainda que a decisão liminar não deveria ter
vezo penal, nem caráter de sanção punitiva, ainda que por acaso criasse para
Renan um natural constrangimento. O objetivo da liminar era (ou deveria ser)
proteger um bem jurídico de maior hierarquia, apodítico, incontroverso. Quando a
polícia para um cidadão e lhe dá busca de armas certamente lhe causa um incômodo
considerável, mas certamente não é esse o objetivo.
Os exemplos militares descritos pelo eminente
professor Rui Martinho Rodrigues trata de medidas de prevenção estratégica no
advento de um conflito bélico. Não é a mesma coisa. As providencias dos
presidentes e generais citados no exemplo, por seu turno, não se referem o
risco entrevisto em nenhuma demora pacífica, mas em medidas urgentes de
prevenção imediata.
Digamos que o tal presidente tomasse a decisão
de mobilizar as tropas e destruir documentos por medida de segurança, e fosse
remanchando, retardando a providência. Então poderiam os generais arguir junto
a ele o princípio do periculum in mora.
Noutro exemplo, calibrar o pneu sobressalente
do automóvel antes de uma viagem é uma medida cautelar que não evoca o perigo
da demora, mas apenas previne que em ocorrendo uma perfuração ou vazamento os
viajantes fiquem à deriva.
Para encontrarmos uma analogia de periculum in mora, abstraindo-nos do
mundo jurídico, e ficando no exemplo automotivo, poderia ele ser reclamado pela
esposa contra o marido negligente que se pusesse a adiar a troca de pneus do carro
da família.
Ele continua rodando com a esposa e filhos a bordo,
desgastando a borracha “careca” dos pneus, com o risco de estourar a qualquer
momento. O risco de enguiço neste caso não é um perigo em abstrato, mas baseado
em um risco previsível, agravado pelo tempo. É perigo da demora.
Então, para mim, a medida liminar de Marco
Aurélio estava tecnicamente perfeita, ainda que politicamente equivocada. Estava
juridicamente fundamentada, mas a motivação tinha o vício da mágoa, e
periclitava um bem jurídico bem maior, que era a aprovação de medidas
salvadoras do Executivo Federal. Data venia.
Reginaldo Vasconcelos
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