segunda-feira, 17 de novembro de 2014

ARTIGO (VM)


  
A IDEIA DA PALAVRA BISSEXTO
Vianney Mesquita*

Primum vivere deinde philosophare.

Amigos e pessoas modestas a mim chegadas, nomeadamente não muito afeitos ao trato literário, me perguntam, com recorrência, acerca dessa dicção, empregada a miúdo com relação aos poetas e escritores pouco produtivos ou de produção singular.

Em 2012, derradeiro ano bissexto decorrido, as indagações mais afluíram, de modo que passo a narrar o assunto, louvado no Lello Universal, um dos meus volumes de travesseiro, tantas vezes aqui mencionado, porquanto obra de referência da melhor crase.

Colho dali a ideia de que, no tempo do Império Romano, sob Caio Júlio César, o ano vulgar possuía 365 dias. Como o movimento de translação anual da Terra à volta do Sol somente se completa após 365 dias mais um quarto, as seis horas restantes ensejavam divergências entre o ano civil e o moto dos corpos celestes – estrelas, planetas, nebulosas, cometas etc.

Júlio César, então, convocou o astrônomo Sosígenes, de Alexandria, e contratou com ele a solução do problema. O Sábio alexandrino, pois, decidiu estabelecer que, de quatro em quatro anos, seria acrescentado um dia ao mês de fevereiro, resultado da soma das horas sobrantes de 365 dias nos quatro anos. Tal significa dizer que, empós um ano de 366 dias (bissexto = duas vezes sexto), se seguiriam três de 365 e um de 366 dias. De tal maneira, não parece correto se dizer que um ano perfaz 365 e seis horas.

Curioso é notar o fato de que todos os anos cuja expressão numérica é divisível por quatro são bissextos, com 366 dias, como nos casos de 1.600, 1.200, 800 e 2.000.

Os anos seculares, salvante esses do exemplo e outros cujos dois algarismos iniciais não se expressam como exatamente divisíveis por quatro, não resultam bissextos, razão por que o ano secular de 1.900 não o foi.

Em alusão a essa periodicidade do tricentésimo sexagésimo sexto dia, inventou-se, no Brasil, uma locução neológica, desusada noutras nações lusófonas – poeta bissexto/escritor bissexto.

Esse neologismo, então, tenciona conotar o estado daquele, particularmente do poeta, dedicado excepcionalmente à literatura, fazendo poucos versos, o que sugere se evocar, em razão dessa escassez de produção, o dia bissexto de fevereiro (29) e os anos bissextos.

Ocorre, exempli gratia, com EUCLIDES Rodrigues Pimenta DA CUNHA, celebrado autor nacional das letras social, histórica e política. O Autor fluminense produziu extraordinárias obras neste fertílimo terreno, internacionalmente conhecidas e acatadas, como, v.g., Peru versus Bolívia, Contrastes e Confrontos, À Margem da História e o admirável Os Sertões, além doutras de fecunda inspiração e lúcidas ilações.

Euclides da Cunha (*Cantagalo-RJ, 20.01.1866 ; + Rio de Janeiro, 15.08.1909) achou de escrever, em meio às produções do seu gênero, o Soneto sequente, que extraí de Os mais Belos Sonetos Brasileiros, livro de Edgard Resende (Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1945):

Se acaso uma alma se fotografasse,
De sorte que nos mesmos negativos
A mesma luz pusesse em traços vivos
O nosso coração e a nossa face ...

E os nossos ideais, e os mais cativos
De nossos sonhos ... se a emoção que nasce
Em nós também nas chapas se gravasse
Mesmo em ligeiros traços fugitivos ...
Amigo! Tu terias com certeza
A mais completa e insólita surpresa
Notando - deste grupo bem no meio
Que o mais belo, o mais forte e o mais ardente
Destes sujeitos é precisamente
O mais triste, o mais pálido e o mais feio.

Muitos dos literatos nacionais fizeram versos assim, bissextamente.

Há alguns livros, especialmente de sonetos (duas estrofes de quatro versos = quartetos; e duas de três = tercetos ou trísticos), enfeixando a produção de poetas bissextos, o mais importante dos quais, pela sua contemporaneidade, é a Antologia dos Poetas Bissextos Contemporâneos, organizada por MANUEL Carneiro de Sousa BANDEIRA Filho.

A produtiva industriosidade neológica brasileira – cearense, nomeadamente – já se serve de estender mais ainda o alcance de bissexto, de maneira que se diz, progressivamente, economista bissexto, administrador bissexto, articulista bissexto advogado, orador, comentarista e até bebedor bissexto; tudo isto sem remissão a fevereiro como o mês em que, por motivo óbvio, a mulher fala menos...

*Vianney Mesquita 
 Docente da UFC 
Acadêmico Titular da Academia Cearense da Língua Portuguesa  
Acadêmico Emérito-titular da Academia Cearense de Literatura e Jornalismo 
Escritor e Jornalista

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