segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

LÍNGUA DE CAMÕES

SÉRIE
DESLIZES NA ESCRITA
Impropriedades do Discurso
(1de 4)
Por Vianney Mesquita*


Se não quiseres ser esquecido, mal estiveres morto e apodrecido, escreve coisas dignas de ler ou opera coisas dignas de escrever. (FRANKLIN, Benjamin – Boston, Mass, 17.01.1706; Filadélfia – Pens., 17.04.1790).


Martins Filho
No já recuado 1997, eu e meu preclaro amigo, consultor literário e ex-reitor da Universidade Federal do Ceará, Prof. Dr. José Anchieta Esmeraldo Barreto, na qualidade de orientadores e revisores de textos universitários, nos ajuntamos com vistas a preparar o livro A Escrita Acadêmica – acertos e desacertos, publicado pelo Programa Editorial da Casa de José de Alencar, na época sob a direção do reitor perpétuo da U.F.C., Prof. Antônio Martins Filho (* Crato, 22.12.1904; + Fortaleza, 20.12.2002).

Reunimos, então, anotações de erros gramaticais e estilísticos, muito comuns, evidentemente, no texto de qualquer um que transfere a ideia, do jeito como nasceu, para o suporte de escrita – seja papel ou espécie outra – sem submetê-la ao próprio crivo revisional ou a outra pessoa que lhe possa aprestar a qualidade escritural, a fim de poder restar pronta, responsavelmente, para publicação.

Não nos ativemos, porém, a esse estalão de impropriedade, até pelo fato de serem naturalíssimos enganos de tal casta, hajam vistas as dificuldades inerentes à Língua Portuguesa.

Preferimos, então, congregar as manias, clichês, modismos, redundâncias, frases feitas, contradições lógicas e – por que não referir – teimosas bestagens da moda, com vistas, senão a banir, pelo menos a reduzir a frequência desses escorregos que tanto malefício trazem à escrita, mui particularmente aos estilos, ao postar na vala comum todos os que se prestam à atividade de externar pensamentos, por intermédio de qualquer condutor verbal.

Cuidamos de não proceder somente aos comentários a respeito dessas pérolas reunidas, mas, também, preparamos um ensaio propedêutico, fazendo alegações gramaticais e relativas à elocução, muito particularmente atinentes aos escritos acadêmicos, móvel principal da edição.

Na segunda parte do trabalho, cobrindo as bobices, decidimos nos liberar da circunspecção do léxico científico e imprimir ao escrito o tão apreciado retoque cearense de espirituosidade, objetivando conquistar o leitor, e até porque, por si mesmos, os causos escolhidos trazem conteúdo burlesco, conforme a pessoa que os ler poderá divisar naqueles poucos reproduzidos à frente.

Sobra, felizmente, o ensejo de expressar o fato de que o volume se esgotou rapidamente e o resultado foi a quase supressão, de nosso meio universitário, desses sestros ingênuos, porém malfazejos, verdadeiros vírus do repertório da Língua de Luís Vaz de Camões (*Coimbra,? 1514; +Lisboa, 10.06.1580).

Desafortunadamente, entretanto, outros ocuparam seus lugares, como os indefectíveis a partir, construção-construir, apresentar (emprego excessivo), através, partindo do pressuposto, por suposto (este trazido do castelão), dar visibilidade e tantas outras muletas novas do aleijado repertório universitário, o qual, pela “fé do carvoeiro” que imprime, se espalha pelo jornalismo, a literatura, a língua (dita) culta e a todos os quadrantes de fala, a qual, indebitamente, é havida como correta, amodernada e estilisticamente assentada.

Trago, neste passo, à colação, com as modificações solicitadas pela diacronia imanente aos códigos glotológicos – pelas quais me responsabilizo – a narração de algumas dessas escorregadelas de consulentes nossos, elegidas para compor esta parte do volume, do qual fui coautor com o nomeado Professor Doutor Anchieta Barreto.

Generalidades

São registadas no discurso acadêmico, em ultrapassagem às manias, redundâncias, clichês e contradições lógicas, desconveniências de ordem conceitual e informativa, fato denotativo, em muitos casos, do despreparo das pessoas até no estádio elementar.

Quando da exposição de conceitos, reprodução de brocardos célebres, informações acerca de datas e lugares, ou de quaisquer comunicações de que não se guarda a devida certeza, é sempre de boa proposta conferir, se possível em mais de uma fonte idônea, a exatidão da ideia que se vai publicar. Somente assim, os produtores de mensagens didático-científicas não serão responsáveis por induzir ao engano e conduzir leitores à falácia, haja vista a propriedade, encerrada pelo erro, de velozmente se multiplicar.

Demonstrativo da carência de informação primária é, verbi gratia, o caso de uma mestranda cuja dissertação foi-me entregue para revista. Ela mencionou, numa passagem do seu estudo, a admiração de Leonardo Da Vinci ante a perfeição do seu David: “Parla”! – teria dito.

Todos hão de notar, de plano, que a ensaísta, no calor, agitação, cansaço e falta de conhecimento, permutou a obra e o escultor: a peça era Moisés e Miguel Ângelo Buonarroti o artista (BUONARROTI, Michellangelo di Ludovico Simoni. *Caprese, 06.03.1475; + Roma, 18.02.1564).
Sem-razões como esta, e de outras naturezas, são corriqueiras nos ensaios de altos estudos da seara científica. Para efeito de demonstração, foram pinçados do livro sob comentário uns poucos desses sucessos.

Geografia Violentada 

Um estudante de doutorado em História (note-se o veio mordente) prejudicou sensivelmente os suecos e, muito particularmente, o historiador de religiões, filósofo e filólogo francês Georges Dumézil (Paris, *04.05.1898; + 11.10.1986), que preferiu ficar na Suécia com a transferência da cidade de Uppsala para a Suíça . Os estudos de Dumézil, decerto, foram interrompidos, porquanto lhe subtraíram a célebre Universidade, fundada em 1477, e com ela a biblioteca, com o Manuscrito de Ulfilas (Codex argenteus).

Outro fez pior, pois tirou Liége da Bélgica e a entregou à França; transferiu Estrasburgo para a Alemanha e se referiu às belas praias marítimas do interior do Ceará. Complementando o dislate, identificou Eire e Irlanda do Norte como o mesmo país.

Creio em Deus Pai!

A profissão de fé e símbolo dos apóstolos referida aqui não é o Credo de Niceia, tampouco de Constantinopla, mas o “Credo de Messejana”, no qual o mestrando arranjou um lugar para Judas Iscariotes.

Dizendo que o tema do seu estudo (invasões de propriedades rurais) não era do seu agrado, quase imposto que foi pela orientadora, acentuou:

Entrei neste assunto como Judas entrou no Credo!
E eis que invadiu a propriedade de Pôncio Pilatos, cuja atitude foi, de pronto, lavar as mãos.

Lineu, Ventríloquo de Leibniz

Lineu
Godofredo Guilherme Leibniz (*Lípsia – Al., 01.07.1646; +Hannover, 14.11.1716) asseverava aquilo que, mais tarde, Nelson Rodrigues chamou de “óbvio ululante”: Tudo corre pelo melhor no melhor dos mundos possíveis. François Marie Arouet, dito Voltaire (*Paris, 21.11.1694; +30.05.1778), desdenhou do Sábio alemão por esta sentença.

Voltaire
Ririam ambos – Voltaire e Nelson Rodrigues (*Recife, 23.08.1912;+ Rio de Janeiro, 21.12.1980) – da transferência de autoria feita por um ensaísta, que atribuiu a Lineu o Natura non facit saltus (“A natureza não dá saltos”), do mencionado Leibniz.

O botânico sueco Carl von Linné (*Rässhult-Kronoberg, 23.05.1707;  +Uppsala, 10.01.1778) – o pai – tinha apenas nove anos quando Leibniz  morreu.

Leibniz
Com efeito, caso se queira acreditar nesta informação, se haverá de aceitar o fato de que, nessa curta contemporaneidade e vivendo um na Alemanha e outro na Suécia, o Filósofo tedesco falou pela boca fechada de Lineu (BARRETO & MESQUITA, 1997).


*Vianney Mesquita
Professor da UFC
Escritor e Jornalista
Membro da Academia Cearense 
da Língua Portuguesa
Titular da Cadeira de nº 22 da ACLJ

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