VALDIQUE
Por Rui Martinho Rodrigues*
1º Ato
O CRAQUE E O
PERNA-DE-PAU
Valdique era um craque. Dominava a
bola como poucos. Tinha o dom da finta, espécie de garrincha do subúrbio; chute
certeiro, goleador consagrado. Mas Valdique também praticava outro esporte:
levantamento de copo. Fumante incansável, era um jogador cansado, faltava-lhe
fôlego em poucos minutos de futebol. Faltava, igualmente, velocidade ao craque.
José Alves era um perna-de-pau. Os dois amigos gostavam de formar no mesmo
time, no areal sombreado, sob o mangueiral da casa de um terceiro atleta de
fim-de-semana.
José Alves não se dava bem com a
bola, nem com estudo ou com o trabalho. Espertalhão, criativo, buscava solução
para todo problema sem muitos escrúpulos. Um dia, José Alves, antes do joguinho
das tardes de sábado, convidou Valdique para um rápido lanche. O craque
relutou, alegando que iam jogar.
O Perna-de-pau replicou: era só um
suco de fruta, o calor estava insuportável e tal e coisa. Valdique topou.
Depois do suco foram ter com a bola. O craque surpreendeu a todos. Jogou como
uma fera, correu o campo todo, mostrou o melhor condicionamento físico por toda
a tarde, da defesa ao ataque.
No dia seguinte, Valdique estava
arrasado. Doíam-lhe todos os músculos. Mal podia andar. No bar da esquina
revelou-se o segredo: José Alves dopara o Valdique.
2º Ato
UMA MISSÃO BASTANTE POSSÍVEL
Valdique não era nada habilidoso com
as mulheres. Um dia, melhor dizendo, uma noite, arranjou uma namoradinha de
ocasião. Liso, levou-a para um prédio em construção. Desajeitado, apressado,
temendo o lugar perigoso, Valdique rompeu o períneo na moça. Isso no tempo em
que defloramento era coisa muito séria, tinha que ser feito muito
discretamente, quando fora das condições consagradas pelos costumes. A hemorragia
assustou tanto a mocinha quanto o rapaz. Era preciso hospital e demais
providencias. A moça escapou e o segredo morreu. Era preciso casar. O casamento
“reparava o mal” perante a lei e a sociedade.
Valdique, desesperado, foi orientado
pelo amigo José Alves. A solução era simples. Bastava tirar uma nova certidão
de nascimento, com outro nome. Valdique virou Valmir. A moça estranhou, mas foi
convencida pelo Craque: Valdique era apelido de casa. Era preciso, ainda, mais
uma testemunha para o casório.
Valdique chamou outro amigo, Amadeu,
um rapaz do bairro, que não estudava nem trabalhava regularmente, mas
acompanhava o Valdique naquele outro esporte: levantamento de copos. Amadeu
reagiu, cheio de escrúpulos. Mas precisava saldar algumas dívidas nos bares do
bairro. Além disso, Valdique sempre lhe pagava uma dose aqui e outra ali, nem o
descriminava como tantos outros. Não ficava bem abandonar o amigo numa hora
dessas.
Amadeu era cheio de nove horas: “homem
de honra não abandona um amigo”. Adotado – digo, criado por uma senhora idosa –
Amadeu vivia no limbo. Não era “classe média” nem era pobre, ou era pobre, mas
diferente. Era um cara inteligente, com boa compreensão do mundo. Queria ser
correto e respeitado. Não reconhecia como superiores os amigos de infância que
– discretamente ou não – se afastaram dele progressivamente, enquanto cresciam
e se sentiam hierarquicamente superiores pela diferenciação social, emprego,
estudo e outras coisinhas mais.
Os filhos da velha senhora que o
criou, temendo dividir a herança, não deixaram que ela o adotasse. Nem filho
nem empregado: eis o limbo de Amadeu. Nem igual nem diferente dos outros
meninos e, mais tarde, rapazes do bairro. Amadeu agora fazia biscates e...
precisava que os companheiros de infância lhe pagassem uma dose! Só uma... de
cada vez. Era a tal da diferenciação social. O amigo, que nem era tão amigo
assim, apenas não o discriminava, não seria abandonado naquela situação.
Valdique – ou melhor, Valmir – casou-se, com testemunha e tudo. Valdique continuava, porém, solteirinho da
Silva. Quem se casou foi “Valmir”, conforme a certidão de nascimento e as
testemunhas. Valdique foi embora pra São Paulo e nunca mais voltou.
Amadeu não recebeu nada por isso,
além dos agradecimentos.
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