sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

CONTO

VALDIQUE
Por Rui Martinho Rodrigues*

1º Ato

O CRAQUE E O PERNA-DE-PAU

Valdique era um craque. Dominava a bola como poucos. Tinha o dom da finta, espécie de garrincha do subúrbio; chute certeiro, goleador consagrado. Mas Valdique também praticava outro esporte: levantamento de copo. Fumante incansável, era um jogador cansado, faltava-lhe fôlego em poucos minutos de futebol. Faltava, igualmente, velocidade ao craque. José Alves era um perna-de-pau. Os dois amigos gostavam de formar no mesmo time, no areal sombreado, sob o mangueiral da casa de um terceiro atleta de fim-de-semana.
José Alves não se dava bem com a bola, nem com estudo ou com o trabalho. Espertalhão, criativo, buscava solução para todo problema sem muitos escrúpulos. Um dia, José Alves, antes do joguinho das tardes de sábado, convidou Valdique para um rápido lanche. O craque relutou, alegando que iam jogar.
O Perna-de-pau replicou: era só um suco de fruta, o calor estava insuportável e tal e coisa. Valdique topou. Depois do suco foram ter com a bola. O craque surpreendeu a todos. Jogou como uma fera, correu o campo todo, mostrou o melhor condicionamento físico por toda a tarde, da defesa ao ataque.
No dia seguinte, Valdique estava arrasado. Doíam-lhe todos os músculos. Mal podia andar. No bar da esquina revelou-se o segredo: José Alves dopara o Valdique.
  2º Ato
UMA MISSÃO BASTANTE POSSÍVEL
Valdique não era nada habilidoso com as mulheres. Um dia, melhor dizendo, uma noite, arranjou uma namoradinha de ocasião. Liso, levou-a para um prédio em construção. Desajeitado, apressado, temendo o lugar perigoso, Valdique rompeu o períneo na moça. Isso no tempo em que defloramento era coisa muito séria, tinha que ser feito muito discretamente, quando fora das condições consagradas pelos costumes. A hemorragia assustou tanto a mocinha quanto o rapaz. Era preciso hospital e demais providencias. A moça escapou e o segredo morreu. Era preciso casar. O casamento “reparava o mal” perante a lei e a sociedade.
Valdique, desesperado, foi orientado pelo amigo José Alves. A solução era simples. Bastava tirar uma nova certidão de nascimento, com outro nome. Valdique virou Valmir. A moça estranhou, mas foi convencida pelo Craque: Valdique era apelido de casa. Era preciso, ainda, mais uma testemunha para o casório.
Valdique chamou outro amigo, Amadeu, um rapaz do bairro, que não estudava nem trabalhava regularmente, mas acompanhava o Valdique naquele outro esporte: levantamento de copos. Amadeu reagiu, cheio de escrúpulos. Mas precisava saldar algumas dívidas nos bares do bairro. Além disso, Valdique sempre lhe pagava uma dose aqui e outra ali, nem o descriminava como tantos outros. Não ficava bem abandonar o amigo numa hora dessas.
Amadeu era cheio de nove horas: “homem de honra não abandona um amigo”. Adotado – digo, criado por uma senhora idosa – Amadeu vivia no limbo. Não era “classe média” nem era pobre, ou era pobre, mas diferente. Era um cara inteligente, com boa compreensão do mundo. Queria ser correto e respeitado. Não reconhecia como superiores os amigos de infância que – discretamente ou não – se afastaram dele progressivamente, enquanto cresciam e se sentiam hierarquicamente superiores pela diferenciação social, emprego, estudo e outras coisinhas mais.
Os filhos da velha senhora que o criou, temendo dividir a herança, não deixaram que ela o adotasse. Nem filho nem empregado: eis o limbo de Amadeu. Nem igual nem diferente dos outros meninos e, mais tarde, rapazes do bairro. Amadeu agora fazia biscates e... precisava que os companheiros de infância lhe pagassem uma dose! Só uma... de cada vez. Era a tal da diferenciação social. O amigo, que nem era tão amigo assim, apenas não o discriminava, não seria abandonado naquela situação.
Valdique – ou melhor, Valmir – casou-se, com testemunha e tudo. Valdique continuava, porém, solteirinho da Silva. Quem se casou foi “Valmir”, conforme a certidão de nascimento e as testemunhas. Valdique foi embora pra São Paulo e nunca mais voltou.
Amadeu não recebeu nada por isso, além dos agradecimentos.


*Rui Martinho Rodrigues
Professor e Advogado
Presidente da ACLJ
Titular de sua Cadeira de nº 10

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