Vaqueiros
nos andaimes
Paulo Ximenes*
Juca Gomes, vaqueiro calejado dos rincões da Várzea Alegre, possuía uma pequena garra de terra, algumas cabeças de gado, uma família decente, e, no melhor do seu ofício, saía-se perfeito no arrebanhar da rês fugidia. Não tinha conversa torta: se ela se desgarrou do rebanho, lá se ia ele atrás dela, no seu cavalo arisco, metido no gibão e no chapéu de ouro, implacável, sob as unhas-de-gato e o juremal, quer faça chuva, quer faça sol, como se estivesse atravessando uma touceira de capim... E aquilo não consumia nem a metade da sua coragem. Algo parecido com a doidice.
Pareava, por assim dizer, com a legítima descrição do sertanejo referido por Euclides da Cunha, cheio de reflexos e destrezas, e pincipalmente desprovido do que o comum mortal chama de “medo”. Dessas energias que não se sabe direito de onde vêm. Bastava uma banda de rapadura e um punhado de farinha para o homem fazer misérias. Saiam da frente, que lá vem o Juca Gomes!!!
No tempo certo lhe veio o santo matrimônio. A família crescendo, a luta continuando, a vida girando... Aí, instalou-se no seu sertão, mais uma vez, a besta-fera da seca. Três anos consecutivos de falta de chuvas, quando não, uns chuviscos esporádicos, um aqui, outro acolá, mormaços que só davam em gripe. Juca não se rendeu. Mudou o gado de um canto para o outro, vendeu um bem aqui, desfez-se de outro acolá. Ofereceu sua mão-de-obra barata e sua valentia sem preço a quem se dispusesse a lhe pagar qualquer merreca por dias de serviço.
Não demorou, e os que estavam lhe acudindo, também por serem pequenos, viram-se logo exauridos de recursos. A união entre eles, por mais boa vontade que houvesse, era um abraço de afogados: não haviam ainda sido inventadas as medidas governamentais para o enfrentamento aos efeitos das estiagens. E haja sofrimento. Mazelas de toda sorte que não se podia nem delir.
Daquelas dores profundas, seculares, arraigadas na pele sertaneja, a clamarem pela percepção popular e até por um esforço de imaginação: quem não é do mato não pode fazer ideia da amargura por que passa um pequeno agricultor-vaqueiro nordestino ao ver o sol estorricando o restinho do verde que lhe resta, anulando seu esforço bestial empreendido atrás de uma enxada, dia após dia. Não pode também avaliar o que significa a última carreira de milho, regada ao suor, reduzir-se a um monte de palhas secas ou o gado definhar da noite pro dia. Muito menos lhe será concedido passar pela vergonha de não poder arcar com os compromissos assumidos na bodega que lhe acode de mantimentos.
Ele aprendeu com o arrastar do tempo que o êxodo rural é um rumo mal traçado. “Sul maravilha” é conversa pra boi dormir. Aliás, essa palavra no seu dicionário tem outra conotação: maravilha é céu nublado, açude tomando água e vaca tomando cria; é menino gordo e corado, mulher séria e trabalhadora; é merecer o respeito e a confiança dos outros. Ainda cabe dizer naquele ermo de sertão, longe do pendor criminal, que maravilha é poder também portar uma “doze polegada” na cintura, para caso seja preciso.
Vida que segue. No primeiro dia de trabalho, Juca deu de cara com o Zé Diniz, outro vaqueiro cearense, vindo das bandas das Lavras da Mangabeira, agora, fazendo as vezes de servente de pedreiro; um conterrâneo com quem repartia as mesmas origens, os mesmos destinos, os mesmos apegos à vida de gado. Vararam decerto as mesmas veredas de espinhos, cometeram as mesmas estripulias na meninice, estancadas ao ardor das palmatórias. Não se conheciam, é fato. Mas tão longe de casa assim... Ver um cabra do Ceará era ver um irmão.
Pau-de-arara chegando em São Paulo, vai morar nos bairros mais distantes e menos estruturados. Zé Diniz, não fugindo à regra, houve-se com sua família num terreno baldio, já pondo de lado o sentido da urbanidade, praticamente um pedaço de mato que, alugado e tendo sofrido algum trato, tornou-se chácara... O pouco que nela havia parecia muito: uma singela casa por terminar, um acanhado criatório de galinhas, uma porca gorda, alguns bacorinhos, meia dúzia de capotes e um bom vira-lata. E, para aguçar as lembranças de outros tempos, duas garrotas viçosas desfilavam pra cima e pra baixo, sacolejando chocalhos.
Juca Gomes e sua família foram convidados a passar um final de semana na “chácara”. Convite aceito. Para não chegar com as mãos abanando, mandou ver carne do sol, feijão de corda e um litro de cachaça. Viveram, então, agradáveis momentos sob chuva fina, algo mais consistente que uma garoa. Nuvens carregadas, dias bonitos – como diria um bom cearense! Ao entardecer do sábado, veio uma grata surpresa: outro peão chegado de Pernambuco – o Barbicha – trouxe uma sanfona de oito baixos. Rapaz jeitoso, assentador de cerâmica no mesmo prédio, com pinta de artista.
Os versos do Rei do Baião e as cantorias improvisadas avexaram neles a aura nordestina. Assim, do nada, deu-se o consumo de dois litros de aguardente. E por conta da “marvada”, do Luiz Gonzaga, do cheiro de terra molhada e dos chocalhos das novilhas, o Juca – às pressas – enxugou uma lágrima. Nela cabia um Ceará inteiro, lindo como nenhum outro Estado da Federação sabe ser! Uma terra que, abençoada pela chuva, espelha em suas folhagens o verde mais verde do mundo e faz correr nos riachos cristalinos uma pureza que encanta o mato, os homens e os bichos.
Naquele delírio, e no calor da saudade mais matadeira, Juca Gomes deve ter surtado em sonhos profundos, ouvido rangidos de porteiras, gritos de aboios e até o seringado de leite mugido numa vasilha de alumínio... Coisas rotineiras do seu sagrado estirão de terra e da sua casa rodeada de umbuzeiros.
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