UM CEARENSE SURREAL
Wilson Ibiapina*
O cantor e compositor Raimundo Fagner, que também é pintor, foi quem me lembrou do artista cearense Darcílio Lima, que morava num castelo na França. O desenhista, gravador e pintor autodidata nasceu em 1944 em Cascavel, Ceará.
Só
alguns intelectuais cearenses conhecem Darcílio Lima, que começou a pintar
temas regionais em 1951, em Fortaleza. No inicio dos anos 60 mudou-se para o
Rio. A biografia dele na Internet diz que depois de pintar paisagens e
jangadas, seguiu-se a fase de nus femininos, tendo aderido, em seguida, ao
surrealismo. Em 1966 chegou a ser internado na Casa das Palmeiras, instituição
mantida pela psiquiatra alagoana Nise da Silveira. Desde então, ele nunca mais
parou de sofrer de distúrbios mentais.
Darcílio era considerado uma referência no surrealismo. O jornalista pernambucano Carlos Marques, que mora em Paris, conta que graças ao patrocínio de Dali o pintor cearense passou a viver como um milionário, que tomava banho de perfume francês e andava impecavelmente vestido. Cultivava no rosto um bigode bem cuidado. Seus quadros eram vendidos a peso de ouro nas galerias de arte da Europa. Nessa época ele morava em um apartamento no Quartier Latin e num castelo em Angers, perto de Paris.
O jornalista Carlos Marques chegou a morar com ele no castelo que servira de pousada a Hitler numa de suas idas secretas à França. Mas um dia se desentendeu com o pintor. Arrependido, pediu ao Fagner para ajudá-lo a fazer as pazes com Darcílio.
Certo dia, Fagner e Carlos Marques saíram de Paris apenas para dar uma volta, um passeio, e quando aquele deu fé já estava dentro de um trem rumo a Angers. Uma viagem regada a muito conhaque.
No meio do caminho desceram do trem e foram pegar um ônibus. O transporte já tinha saído e os dois fizeram o resto da viagem a pé. Ao chegarem ao Castelo ficaram mais de uma hora debaixo de chuva. O pintor só resolver abrir a porta quando soube que o Fagner estava com o Carlos, seu inimigo.
Um
passeio que ele nem gosta de lembrar. A permanência no castelo parecia cenas de
um filme de terror… Um frio de cortar a alma corria pelo castelo e o
pintor não usava o aquecedor. Passava o tempo dentro de uma banheira com
um cavalete ao lado, as mãos secas e um olhar cadavérico.
Fagner conta que Darcílio colocou ele e o Carlos Marques nos dois quartos mais distantes e passava a noite andando de um lado a outro pisando naquelas madeiras velhas de uma maneira sinistra. Lembra Fagner: “A cama e os móveis eram enormes, de cores escuras, o que deixava o ambiente ainda mais pavoroso. Ele pisava tábua por tábua milimetricamente. Uma assombração que fazia com que o dia demorasse a chegar”. Quando clareava, ele pegava uma bicicleta e ia buscar comida e os três passavam o dia numa mesa enorme com um frio de rachar, ouvindo histórias de cortar a alma.
Carlos Marques conta no seu livro “Lá Sou Amigo do Rei” que rompeu com o pintor por causa da cantora norte-americana Joan Baez. Ela estava em turnê pela Europa. Depois de entrevistá-la, conversou sobre Darcílio e ela quis conhecê-lo. Errou quando propôs uma sessão de fotos da cantora com o pintor. O cearense, que odiava a tudo que era POP, negou-se a posar ao lado ”daquela piranha”.
Depois de uma discussão, Carlos Marques, que havia tomado umas taças a mais de vinho, partiu para a ignorância. Pegou uma tesoura e destruiu as 40 gravuras que havia ganhado de presente, cada uma valendo milhões de francos, a moeda da época na França. Enquanto Darcílio chorava, Marques pegou a mala e voltou a morar na rua, sem dinheiro e sem teto.
Em
1985, de passagem pelo Rio, Carlos Marques recebeu notícia de Darcílio Lima,
que ele não via havia dez anos. Ficou sabendo que o pintor estava de volta a
Cascavel. Procurou o poeta Gerardo Melo Mourão, presidente da Rioarte, uma Secretaria
de Cultura da época. A ideia era filmar o pintor na sua terra natal e depois
levá-lo para o Rio e promover o resgate de sua obra. Mourão concordou em
assinar o projeto “Retrospectiva Darcílio Lima”.
Com passagens cedidas pelo Humberto Barreto, presidente da Transbrasil, viajou para o Ceará na companhia da cineasta Anne Jordan para se reconciliar e gravar o documentário. Ele achou fascinante a ideia de uma retrospectiva de sua obra, que ele sonhava exibir nos Estados Unidos.
Mas os acessos de loucura estavam de volta. Poucos momentos de lucidez. Carlos Marques conta no livro: “Em vez do elegante aristocrata proustiano, deparei-me com um mendigo de olhar perdido, cabelos ralos e mal cuidados. O homem que habitara um castelo em Angers morava agora nos fundos de uma velha igreja batista, ao lado de um cemitério. Em meio a divagações sem sentido, indiferente à nossa presença e a tudo em seu redor, dizia de forma lúgubre: “Vim morrer aqui”.
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