SOU FRANCISCO
Totonho Laprovitera
“Até a morte, tudo é
vida” (Miguel de Cervantes)
Humilde, Francisco fizera voto de pobreza e devotava um grande amor
a todos os seres vivos, em especial aos animais. Amava e protegia as criações
de Deus.
Poucos anos antes de morrer, Francisco começou a sofrer dos olhos.
A doença lhe causava fortes dores e a visão toldou. Com as pálpebras inchadas
por irritação e infecção, sentia os olhos se rasgando. A luz o incomodava e a cada
dia sua visão ficava pior.
Ao tomarem conhecimento de um novo tratamento de doenças dos olhos,
os amigos levaram Francisco ao médico. Utilizando-se da prática da
cauterização, o doutor pegou um instrumento de ferro, acendeu o fogo e o colocou
para esquentar até incandescer. Aí, explicou ao Francisco como seria o
procedimento. Já encarnado, o ferro em brasa queimaria a carne do rosto de
Francisco, das bochechas às sobrancelhas. Seriam abertas as veias das têmporas,
na esperança de acabar com a infecção que lhe custava a visão e o levaria à
cegueira.
Enquanto o ferro ardia, Francisco deixou todos abismados. Com a voz
fraca, quase cochichando, pigarreou e disse: “Meu irmão fogo, és nobre e útil
entre todas as criaturas do Altíssimo. Sê bondoso comigo nesta hora. Durante
muito tempo te amei. Rogo ao nosso Criador que te fez para que tempere teu
calor a fim de que eu possa suportar” – e, com o Sinal da Cruz, benzeu o fogo.
Arrepiados com o doloroso método, um a um, os amigos se mandaram. Francisco
ficou sozinho com o médico. Ferrado, a queimadura se espalhou das orelhas aos supercílios.
A aplicação do cautério escancarou as veias. Quando os companheiros voltaram à
sala médica, depararam com Francisco, bem calmo e sem reclamar daquele
sofrimento.
Apesar da ineficiência do procedimento, a fé de Francisco nos dá o
exemplo de como tolerar dor, com quietude e coragem.
Pois bem. Sobre dores e superações, de fato, o que mais nos aflige
é o enfrentamento da morte. A respeito de surtos, epidemias, pandemias e
endemias, contarei algumas passagens ocorridas em meu percurso de existência e vivências.
Em 1961 aconteceu um surto de poliomielite. A paralisia infantil,
como também era chamada, maltratou muitas crianças. Daquela época, das que
escaparam do pior, hoje adultas, várias sobreviventes ainda convivem com as
suas sequelas. Mas, graças a Deus, chegou a prevenção à poliomielite através da
vacina do doutor Albert Sabin, médico e pesquisador, referência mundial na ciência.
Lembro da campanha de erradicação da varíola em 1966. Naquele tempo
eu era criança, cursava o primário, e enfrentei no colégio uma enorme fila para
receber a vacina. Mais que a peste negra, tuberculose e até mesmo a AIDS, a
varíola atacou a humanidade de forma cruel. Perversa, era a principal causa de
mortes no Brasil, desde o seu descobrimento. Dessa vacinação, guardo uma marca
em meu braço direito.
Em 1972 aconteceu a vacinação antissarampo, mas dela não tenho
muitas lembranças. Sei que a doença se espalhava pelo ar e era uma infecção viral
grave para crianças pequenas. Mas de fácil prevenção por meio de vacina.
Já em 1975, o surto de meningite buliu com a Cidade. Perigosamente
mortal, foi a pior que já houve no País! Sucedeu um pouco antes da chegada da
vacina e, em seu auge, nas férias escolares, até banho de piscina foi proibido nos
clubes. A temível meningite meningocócica obrigava o isolamento dos pacientes
para evitar a proliferação da bactéria.
Dessa época, parece que eu estou é vendo, a pistola com vidrinho de
cabeça pra baixo pregado nela, disparando o antivírus no povo de manga
arregaçada, fazendo fila em cobra no Center Um, o primeiro shopping center de Fortaleza.
Em 1977 eu peguei uma catapora de lascar! Muito magro, só a grade – eu pesava 54 Kg, com o sabonete na mão – vestido em meu pijama em que só cabia uma única listra, a doença me tomou o corpo inteiro, tacando bolhas até no solado dos meus pés.
Em 1977 eu peguei uma catapora de lascar! Muito magro, só a grade – eu pesava 54 Kg, com o sabonete na mão – vestido em meu pijama em que só cabia uma única listra, a doença me tomou o corpo inteiro, tacando bolhas até no solado dos meus pés.
Não foi o meu caso, mas naquela época as famílias numerosas costumavam
ajuntar os filhos em uma só alcova para que todos pegassem a doença de uma vez
só e, deste modo, o tratamento ser único, facilitando os cuidados dos
infectados.
Como tudo na vida tem um lado bom, a catapora me valeu de aprendizado
de humildade. Na certeza da fragilidade da carne, elevei o espírito que nos faz
melhor.
Em 1981 eu peguei hepatite B e fiquei coisa de um mês e pouco
acamado. Amarelo empombado, fora de combate, nunca repousei tanto nem comi
tanto doce na vida. Passava o dia assistindo à televisão, lendo de tudo e
desenhando deitado – um grande exercício artístico. Viajando muito pela imaginação,
como risquei e alcancei universos...
Desde o início da epidemia da AIDS no Brasil, em 1982, perdemos
muita gente boa e querida. Os infectados não tinham chance e, na maioria das
vezes, morriam desesperados. Acho que não só aqui, mas no mundo inteiro, foi
uma porrada na vida!
A síndrome se valia da desumana mistura de medo, ignorância e
preconceito aos aflitos viventes. Sobre esse juízo, certa vez ouvi o seguinte.
Ao ser avisada de que um convidado soropositivo iria chegar para o almoço, uma ingênua
de pés descalços disse ao patrão: “Chega, que eu vou já calçar minha alpragata!”
Sobre Aids, eu concluo que dela se cuida com coragem, saber e afeto.
Em 1999 teve a vacinação contra a gripe para a população a partir
dos 65 anos. Mas aí só ouvi falar, porque eu não me enquadrava na faixa etária.
Em 2006 entrou em campo o rotavírus, que dava uma diarreia lascada,
diziam os que não se vacinaram contra ele. Segundo um conhecido boêmio, o
rotavírus é danado para atacar os habituais bebedores de rum.
2011 foi a vez da vacinação da influenza. Tenho quase certeza de que
foi desde aí que eu comecei a me vacinar contra gripe.
Pois é, dessas mazelas que contei, só não falei de quando tive
papeira – “Menino, não pula, senão ela desce!” – porque só me lembro de tê-la
tido quando ainda tenho a sensação do pano amarrando o queixo e com o nó dado
acima do quengo.
Mas agora, vou dizer do isolamento social que tenho vivido nesta
pandemia da Covid-19.
Eu nunca imaginei viver tempos com ares de Terceira Guerra Mundial,
como estou agora sendo enquadrado pelo coronavírus. Esse nojento, que causa dor
de cabeça, dor no corpo, indisposição, febre, náusea e, quando se agrava, terríveis
complicações respiratórias.
Como prevenção, lavamos as mãos com frequência, evitamos tocar o
rosto e ter contato próximo com pessoas que não estejam bem. Não coçar os
olhos, nariz ou boca sem estar com as mãos limpas, tudo bem; agora, ficar em
casa e isolado socialmente, aí requer um exercício de solidão que só a Mãe Arte
nos provém. A arte é igual ao bem. É boa pra quem a faz e pra quem a recebe
também. E só vale a pena se compartilhada for.
Meus dias de casa têm sido sossegados. Quando se acende o dia, acordo,
agradeço a vida ao meu bom Deus. Escovo os dentes, tomo café com pão, engulo meus
remédios, e me abanco à divina mesa de trabalho, altar em que sonho as crenças
de minhas artes. Leio, pesquiso, escrevo, desenho e pinto. Merendo notícias –
as boas, de preferência – e sigo a navegar e voar mares, céus e universos.
Trabalhando, chega-me a inspiração com a paisagem da natureza
simples dos humildes, fortes pela pureza de suas almas. Respiro o amor da minha
família, dos amigos, enfim, de quem veio ao mundo para ser feliz. No almoço,
reflito sobre o valor do alimento e penso na fome dos desvalidos, com a sede do
fim das desigualdades do mundo. Tiro meu cochilo de meia hora e desperto para o
meu ofício de cometer mais arte.
Palmilho as imagens, bulo em vídeos, anuncio os meus rebentos. Na
Hora do Angelus assisto às laives, embalo-me nas redes sociais, desprezo as
distâncias geográficas e espio a lua cheia pela janela do meu quarto crescente.
Tomo banho, janto, escovo os dentes e na boca da madrugada eu me deito. Na velha
fianga de algodão cru, assisto à películas e leio meus pensamentos bem
escrivinhados. Durmo para sonhar com a esperança de tempos melhores. Tenho fé! Sou
Francisco!
No mais,
Inquilino sou da terra,
prego sempre contra a guerra,
desconjuro o satanás.
Pois só Deus é que permite,
quem quiser que acredite,
o mundo viver em paz!
Querido Totonho. Texto honesto, vindo da alma. Embora não seja católico, a associação a qual abraço reconhece Francisco de Assis como Santo. Há um hino, constante de diversas denominações, produzido por divina inspiração a Francisco de Assis. Chama-se "Oh criaturas do Senhor" e eu sempre venho às às lágrimas quando o ouco, só de re-lembra-lo, meus olhos estão submersos. Acredito em outros Santos, em outras religiões. O Sheik Zaed, dos Emirados Árabes seria um outro. Tu, na minha crença, parece que poderás percorrer o mesmo caminho. Grande abraço. Luiz Rego.
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