UMA PERDA ESSENCIAL
Rui Martinho Rodrigues*
A gênese da democracia guarda relação com a substituição da força
pelo diálogo. O reconhecimento da existência de impasses insuperáveis pela
razão exige algo mais. A incomunicabilidade dos paradigmas (Thomas S. Kuhn,
1922 – 1996) decorre dos diferentes pressupostos e valores subjacentes ao
discurso, divergência de significados e de conhecimentos prévios. Gaston Bachelard
(1884 – 1962) viu o conhecimento como obstáculo ao conhecimento novo.
Leon Festinger (1919 – 1989) viu a contradição entre o que pensamos
e o que fazemos, designando-a como dissonância cognitiva. Diferentes fatores conscientes
ou inconscientes estariam envolvidas em tais situações. Os gregos adotaram o
voto da maioria como solução para os impasses gerados pela incomunicabilidade
aludida. Os sábios de Mileto contribuíram para o desenvolvimento do pensamento
racional com a dessacralização do conhecimento que embasou tudo isso, mas não
foi suficiente.
Por volta do século VI a. C. Dracon (? – 621 a.C.) e Solon (640 a.C
– 560 a.C.) enunciaram princípios ordenadores das relações sociais para atenuar
os conflitos. As leis escritas buscam esse fim. A validade do conhecimento, sem
o privilégio da sacralidade, sem satanizar o pensamento divergente, acatando a
decisão da maioria no que concerne ao campo valorativo, respeitando a reserva
do possível, sem confundir juízo de valor com juízo de realidade, estão na
gênese da democracia.
A Idade Média ressacralizou a política, afastando o livre debate e
a decisão pelo voto, depois dos desvios de caminho democrático havidos já na
Antiguidade. A convicção sacralizada sataniza o outro. As cartas do livro "Cartas Sobre a Tolerância", de John Locke (1632 – 1704), discorrem sobre os conflitos
decorrentes da convicção. Transigir com o que considera erro é grave omissão
para o convicto. Confundimos tolerância com silêncio da crítica.
O falibilismo recomenda a coexistência pacífica, não a perda do
direito de expressão do pensamento, inclusive da crítica. Estamos confundindo
respeito a pessoa com intocabilidade das ideias e condutas. Respeite-se a
pessoa de todos, até dos criminosos. Não temos, porém, a obrigação de respeitar
ideias nem condutas criminosas. Razão e referências para contornar os
obstáculos epistemológicos, paixões e interesses são essenciais à democracia.
A pós-modernidade tende para o que Karl Raymond Popper (1902 –
1994) qualifica como relativismo laxista, tanto no plano cognitivo como no
axiológico. A redução de tudo ao uso da linguagem se assemelha ao pensamento
dos sofistas como Protágoras de Abdera (490 a. C – 421 a. C) ou de Górgias de
Leontinos (487 a. C. – 380 a. C.) na Grécia decadente.
Perdemos o fundamento maior da democracia. Confundimos tolerância
com censura; coexistência pacífica com respeito; sacralizamos convicções no
tradicional modelo eclesiástico ou das religiões políticas pseudo laicas. Um
fato que horroriza uma parcela da sociedade é motivo de euforia de outra parte
dos brasileiros.
A satanização do outro, a ética teleológica justificando os meios
pelos fins, a cegueira para as razões do outro, com lado invocando em vão o
“santo” nome da ciência, como se as ciências fossem dogmáticas e unívocas,
exagerando efeitos de ideias e atitudes havidas como erradas, vaticinando
genocídios ou estabelecendo comparações ou qualificativos com o que há de mais
horrendo na história, tudo é um trágico sinal de que perdemos o essencial da
democracia: o falibilismo que admite a possibilidade do outro ter razão e a
tolerância que não renuncia ao exercício da crítica.
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