quarta-feira, 27 de novembro de 2019

ARTIGO - O Foco da Análise (RMR)


O FOCO DA ANÁLISE
Rui Martinho Rodrigues*


O atual excesso de liquidez teve um impulso nas emissões destinadas a fazer face ao choque de petróleo nos anos setenta. Depois vieram as emissões para conter a crise de 2008. Sobra dinheiro. Mas a inflação é baixa em escala mundial. Juros também e agora chegaram ao Brasil. O crescimento econômico, porém, declina como tendência mundial.

Os países da União Europeia têm, no momento, os menores efetivos e orçamentos militares dos últimos cento e cinquenta anos. Os EUA têm o menor efetivo militar desde o fim da Segunda Guerra Mundial e o seu orçamento de defesa, embora seja gigantesco, é aproximadamente metade do que foi entre os anos sessenta e oitenta do Século XX. Ocorre o mesmo com Coreia do Sul e Taiwan, para citar dois exemplos mais expressivos. Apenas Índia e Arábia Saudita, entre as grandes economias, aumentaram significativamente seus gastos militares.

Nações, empresas e famílias nunca estiveram tão endividadas em tempo de paz, apesar dos juros baixos, dos menores orçamentos militares, dos preços do petróleo não estarem altos e do comércio internacional ser, a despeito dos entraves que subsistem, mais aberto do que no passado. Não temos guerras generalizadas na Europa há mais de sete décadas. Árabes e judeus não travam grande conflito desde 1973, não passando de pequenas guerras.

A tecnologia avança em ritmo acelerado, possibilitando grandes ganhos de produtividade. A escolaridade progride em todo o mundo. O impacto das doenças contagiosas e até das degenerativas é muito menor. A crescente integração da mão de obra feminina ao mercado de trabalho é o aumento de um fator de produção. Mas a economia mundial desacelera. O quadro parece contraditório.

A guerra comercial entre EUA e China não é suficiente para explicar a situação descrita. O crescimento baixo não surpreende quando se olha para o nível de investimento. Intrigante é o baixo investimento convivendo com elevada liquidez e juros baixos. Os poderes públicos e as famílias, não por acaso, têm baixa propensão marginal a poupar. Os asiáticos estão crescendo e apresentam tendência inversa neste aspecto. As empresas estão endividadas porque os juros extraordinariamente baixos se constituíram em convite irresistível para o endividamento.

A propensão marginal a poupar é baixa por motivos ligados ao campo dos valores. O foco das reflexões tem negligenciado este aspecto. O hedonismo do nosso tempo estimula o consumo e desencoraja a austeridade. O Estado provedor desencoraja a poupança das famílias que se sentem seguras sob sua proteção. 

Isso estagnou a Europa endividada. Tanta dívida tem um lado credor, entre os quais se destacam os fundos de pensão e alguns países exportadores de petróleo. Tanta liquides sem investir, sob juros negativos, exige uma explicação mais robusta. Falta confiança? O que assusta os potenciais investidores? O endividamento geral?

Vivemos um tempo marcado pelo maior bem-estar já visto, conforme todos os indicadores objetivos de qualidade de vida. Suicídio, depressão, dependência química e tantos males do nosso tempo guardam relação com aspectos subjetivos que confrontados com os indicadores objetivos revelam a falácia dos fatores materiais como determinantes dos acontecimentos históricos.

A revanche do sagrado (Leszer Kolakowski, 1927 – 2009) sugere a falta de transcendência, totalidade e radicalidade, que não encontra resposta na busca autotélica do prazer ou da felicidade solipsista. Faltou a análise do conflito mimético apontado por Renê Noel Theophile Girard (1923 – 2015). O discurso sobre desigualdade e concentração de renda é uma expressão deste conflito.


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