domingo, 26 de julho de 2015

CRÔNICA - Um Quase Afogamento (AM)

UM QUASE AFOGAMENTO
Assis Martins*
(Ilustração de Audifax Rios)


Personagens principais deste relato: Luquinha, cabra disposto recém-chegado à capital para tentar a sorte; Dr. Miguel, lagosteiro, político influente e sua filha Ana, linda mocinha no viço e beleza dos quinze anos.

Quando Luquinha chegou a Fortaleza ficou abismado com o movimento dos carros e das pessoas. Viera esperançoso de arrumar uma ocupação decente, qualquer que fosse, contanto que desse para o sustento, e quem sabe, mandar algum para a família.

A casa de um conterrâneo onde se arranchou provisoriamente ficava perto da praia, mas a imensidão do mar não o impressionou, posto que nascera e se criara numa vilazinha praiana lá pras banda de Camocim, no litoral oeste do Ceará. Era o tipo padrão do praiano, criado com pirão de cangulo, curtido pelo sal e pelo sol, disposto para qualquer empreitada, tirante as que fossem para prejudicar alguém.

Naquela manhã estava alegre com a promessa de um emprego. Não sabia ao certo do que se tratava, apenas sabia que era no comércio de um parente do dono da casa onde estava.

Era um domingão daqueles, com uma fartura de sol e muita gente animada. Convite excelente para amenizar a saudade com uns mergulhos no mar, que para ele não tinha mistérios. Conhecia desde menino todas as manhas das ondas traiçoeiras e os atalhos sutis do vento nordestino.

Foi só chegar e, rapidamente, acomodar os pertences na areia. Daí a pouco estava no seu elemento, braçadas fortes, longos mergulhos. Estava relaxado de verdade, um ponto pequenino de felicidade naquele marzão verde "de tantas esperanças afogadas".

Com os negócios e a política correndo de maneira favorável, bem à vontade numa barraca de praia, cercado de bajuladores e de garrafas de cerveja, Dr. Miguel usufruía das benesses que o dinheiro proporciona. Embevecido com o movimento das beldades ao redor, mal reparava na filha que, aos poucos, se afastava com umas amigas.

Em dia de preamar as ondas vão ficando cada vez mais violentas, e Ana, com a imprudência própria da idade ia se afoitando; no momento seguinte já estava sendo arrastada para o mar aberto, sufocando com a água salgada. O pior é que os circunstantes não percebiam o que estava acontecendo.

O salvamento da garota foi emocionante, com sucessivos lances de arrojo e coragem de Luquinha. A sua decisão, a rapidez com que se atirou nas ondas, o nado forte e decidido e a forma como a retirou da água deixaram as pessoas impressionadas. No mais, seguiram-se as atitudes de sempre nessas ocasiões. A recuperação da jovem, as muitas lágrimas de alegria do pai e as palmadas amistosas nas costas curtidas do herói.

Porém, uma ideia ruim foi tomando conta da mente ingênua do rapaz, só porque um amigo fez um comentário irônico: "Ô bicho sabido, ficou um tempão agarrado com a menina quase nua pra ver se ela respirava..."

Foi o bastante para ele ficar imaginando que o pai dela talvez achasse que se aproveitou da ocasião. E os pensamentos ruins, teimosos foram crescendo, pois os bons passam rápido sem deixar rastro.

E lá estava Luquinha impressionado, sem dormir direito, o que contribuiu para o desfecho. Alguns dias depois, um carro enorme para na frente da casa, e dele desce a figura imponente do Dr. Miguel, conseguira o endereço e vinha agradecer ao salvador da filha, dando-lhe um emprego numa de suas indústrias. Não chegou a dizer a que veio, pois Luquinha, rápido, saiu pelos fundos com seus parcos pertences e hoje, já velho, na sua vila praiana, conta para os mais jovens histórias fantásticas, cheias de maresia e de mistérios.

*Assis Martins
Funcionário da U.F.C.
Cronista e Ilustrador.
Bacharel em Geografia e Tecnologia e Gestão do Ensino Superior  pela Universidade Federal do Ceará

Nenhum comentário:

Postar um comentário