OS TEMPOS APENAS MUDARAM,
MAS A HISTÓRIA...
Por Paulo Maria de Aragão*
No
passado, a ação dos portugueses colonizadores e o interesse econômico
prevaleceram sobre qualquer outro, exsurgindo a oprobriosa escravidão de índios
e negros, autênticas mercadorias, partes de um processo de reificação, que os
tornava moedas de troca entre seus senhores. No mercado escravista, a força
negra tinha primazia sobre a indígena. Em razão dessa superioridade, deu-se a
transmudação do cativeiro de um para outro: a robustez de um negro excedia a de
quatro indígenas.
Há
de observar-se que, a princípio, a Igreja não foi sensível à escravização, mas
com ela condescendeu. Eram os negros caçados como animais ferozes. À hora do
embarque, um sacerdote católico borrifava água benta sobre a carga humana
amontoada nos porões do navio tumbeiro para que aqui chegasse inteirinha, com a
ajuda de Deus. Na travessia cruel do Atlântico, tingiam-se os porões de sangue,
e os corpos alimentavam esfaimados tubarões. Um em cada cinco escravos não
sobrevivia à longa travessia do continente.
Ainda
sob os fortes resquícios coloniais, séculos após, Euclides da Cunha falou da
brava figura nordestina do sertanejo, submetida à servidão pelos fazendeiros
“opulentos sesmeiros da colônia”, que “usufruem, parasitariamente, as rendas
das suas terras, sem divisas fixas”. No relato, esclareceu como apascentavam
essas criaturas simples, que se resignavam aos senhores feudais, mormente
quando atacadas pelo flagelo da seca (“Os Sertões”. 37ª. ed. Rio de Janeiro:
1995, p. 137-138). Registre-se que, entre 1996 e 2007, a Comissão Pastoral da
Terra (CPT), órgão da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), denunciou a exploração de 47 mil trabalhadores.
Hoje,
navios negreiros não mais cruzam os mares. Contudo, o flagelo secular - a
escravidão contemporânea - continua espezinhando e anulando a dignidade humana.
A cena nordestina é imutável: o saqueio de armazéns, o xiquexique e o mandacaru
“enganando a fome”, a falta de água potável, trens e carros-pipas levam água
contaminada aos locais mais atingidos pela estiagem. À chegada desses
paliativos, o sofrimento transforma-se em alegria para um povo sedento e
escaveirado, dando a falsa aparência de redenção. É deprimente a distribuição
de cestas básicas: uma festa de “graças a Deus”, de procissão, de preces, de
rogações públicas e de exaltação aos governantes.
Persiste,
assim, a exploração do homem não alcançado pelo chicotaço (há dúvidas), porém
pelo açoite moral; é uma escravidão tão odienta quanto a colonial, que diz não
ao direito à escola, moradia, saúde, lazer, trabalho digno e remunerado.
Desamparados, mendigam nas ruas crianças, deficientes físicos e idosos, afora
os que sucumbem nos lixões, no mundo das drogas, da prostituição. Outros
escapam plantando e colhendo sob a ameaça de capatazes, em condições subumanas
extremas. São desigualdades envilecedoras e monstruosas que não
envergonham a sociedade, que acolhe em suas entranhas os que batem em retirada
dos sertões em brasa, para engrossarem a violência nos centros populacionais
urbanos.
De
permeio, intensificam-se as trocas de benesses eleitorais com o dinheiro
público, no grupo social sem consciência, carcomido pelo verme do
corrompimento. Entre os proveitos obtidos do flagelo, realça-se a compra de
cadeiras legislativas, matriz gestatória dos vícios da política. E da mesma maneira
como os indivíduos as compram, eles podem ser comprados, vendem o corpo e alma
por qualquer dinheiro. Sem honradez nem princípios, nunca deixam de exercer a
perniciosa influência sobre as camadas inferiores da sociedade. Mudam-se os
tempos, mas a história continua a mesma.
*
Paulo Maria de Aragão
Advogado
e professor
Membro
do Conselho Estadual da OAB-CE
Titular
da Cadeira de Nº 37 da ACLJ
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