LEI DOS DOMÉSTICOS – EVOLUÇÃO DA
SOCIEDADE
Nos anos 90, morreu
uma menina em Fortaleza, no apartamento de uma família onde ela prestava
serviços domésticos, na condição de criadinha sertaneja. Constatou-se que o
fato tinha contornos monstruosos, pois a jovem sofria maus-tratos e morrera por
inanição, à míngua de alimentos, numa versão real e macabra da Gata Borralheira.
Indignado com essa
ocorrência dantesca, um holandês que residia na cidade, trabalhando em uma ONG
humanitária, fez publicar um artigo no jornal O Povo, atribuindo o crime ao
hábito dos brasileiros de manterem escrevas até então, trabalhando em suas
casas.
Ao ler a matéria reagi
incontinenti com uma réplica no mesmo jornal, lamentando o fato horrendo que
ocorrera tão perto de nós, como infelizmente acontece no mundo todo vez por
outra, mas repudiando a atitude do estrangeiro que se imiscuía na intimidade do
nosso povo, pior ainda, atribuindo escravismo aos brasileiros.
Até recentemente,
trazer crianças do interior para cumprir tarefas domésticas na cidade era comum
em todo o nordeste brasileiro. Diante da aridez da nossa hinterlândia e da
pobreza reinante nos sertões, essas pessoas que vinham se incorporar a famílias
urbanas eram de fato premiadas pela sorte.
Raramente os criados atingiam o status de filhos adotivos, e sim de afilhados, mas, via de regra, tinham
alimentação farta, assistência médica e odontológica quando necessário, que as
famílias não queriam alguém doente nas suas cozinhas, ou cuidando das crianças. E no turno da noite esses criados frequentavam os chamados “grupos
escolares” que se espalhavam na cidade, de modo que, malgrado muito raramente
chegassem ao ensino médio, eram alfabetizados.
Claro que aos olhos de
hoje isso não parece o ideal, mas era o que se tinha de melhor naquele contexto
sociológico. Minha avó, meus pais e meus tios criaram muitas meninas e meninos que participavam afetuosamente da vida da família, os mais antigos morrendo na velhice já
convertidos à condição de parentes, acatadíssimos no afeto das novas gerações
que ajudaram a criar e viram crescer.
Muitos saíram para
casar com pessoas de seu nível social, não raro recebendo dos padrinhos casas no subúrbio para criar suas famílias. Alguns rapazes serviram ao
Exército, obtiveram empregos formais, tornando-se profissionais muito conceituados. No Ceará raramente
eram pretos, na sua maioria brancos, caboclos, mamelucos e cafuzos, mas a minha
própria ama era uma jovem negra que estudou e que depois se tornou
contabilista.
Uma lei que garante aos empregados domésticos os mesmos direitos jurídicos dos demais trabalhadores acaba de ser aprovada no Congresso, o que é
ótimo. Mas isso não significa
que os antigos criados fossem escravos das famílias, porque na verdade eram
vítimas de uma condição social madrasta, de modo que ser incorporados às famílias
de classe média era então um golpe de sorte – desde que não tivessem o azar de
cair em mãos criminosas, como aconteceu com a inditosa jovem assassinada.
Aquele holandês, Franz
Van Kranen, que hoje é músico e advogado, entendeu meu enfoque, tornou-se meu amigo e
me recebeu em Amsterdã, anos depois.
Por Reginaldo
Vasconcelos
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