quinta-feira, 28 de março de 2013

ARTIGO


LEI DOS DOMÉSTICOS – EVOLUÇÃO DA SOCIEDADE

Nos anos 90, morreu uma menina em Fortaleza, no apartamento de uma família onde ela prestava serviços domésticos, na condição de criadinha sertaneja. Constatou-se que o fato tinha contornos monstruosos, pois a jovem sofria maus-tratos e morrera por inanição, à míngua de alimentos, numa  versão real e macabra da Gata Borralheira.  

Indignado com essa ocorrência dantesca, um holandês que residia na cidade, trabalhando em uma ONG humanitária, fez publicar um artigo no jornal O Povo, atribuindo o crime ao hábito dos brasileiros de manterem escrevas até então, trabalhando em suas casas.

Ao ler a matéria reagi incontinenti com uma réplica no mesmo jornal, lamentando o fato horrendo que ocorrera tão perto de nós, como infelizmente acontece no mundo todo vez por outra, mas repudiando a atitude do estrangeiro que se imiscuía na intimidade do nosso povo, pior ainda, atribuindo escravismo aos brasileiros.

Até recentemente, trazer crianças do interior para cumprir tarefas domésticas na cidade era comum em todo o nordeste brasileiro. Diante da aridez da nossa hinterlândia e da pobreza reinante nos sertões, essas pessoas que vinham se incorporar a famílias urbanas eram de fato premiadas pela sorte.

Raramente os criados atingiam o status de filhos adotivos, e sim de afilhados, mas, via de regra, tinham alimentação farta, assistência médica e odontológica quando necessário, que as famílias não queriam alguém doente nas suas cozinhas, ou cuidando das crianças. E no turno da noite esses criados frequentavam os chamados “grupos escolares” que se espalhavam na cidade, de modo que, malgrado muito raramente chegassem ao ensino médio, eram alfabetizados.

Claro que aos olhos de hoje isso não parece o ideal, mas era o que se tinha de melhor naquele contexto sociológico. Minha avó, meus pais e meus tios criaram muitas meninas e meninos que participavam afetuosamente da vida da família, os mais antigos morrendo na velhice já convertidos à condição de parentes, acatadíssimos no afeto das novas gerações que ajudaram a criar e viram crescer.

Muitos saíram para casar com pessoas de seu nível social, não raro recebendo dos padrinhos casas no subúrbio para criar suas famílias. Alguns rapazes serviram ao Exército, obtiveram empregos formais, tornando-se profissionais muito conceituados. No Ceará raramente eram pretos, na sua maioria brancos, caboclos, mamelucos e cafuzos, mas a minha própria ama era uma jovem negra que estudou e que depois se tornou contabilista. 

Uma lei que garante aos empregados domésticos os mesmos direitos jurídicos dos demais trabalhadores acaba de ser aprovada no Congresso, o que é ótimo. Mas isso não significa que os antigos criados fossem escravos das famílias, porque na verdade eram vítimas de uma condição social madrasta, de modo que ser incorporados às famílias de classe média era então um golpe de sorte – desde que não tivessem o azar de cair em mãos criminosas, como aconteceu com a inditosa jovem assassinada.  

Aquele holandês, Franz Van Kranen, que hoje é músico e advogado, entendeu meu enfoque, tornou-se meu amigo e me recebeu em Amsterdã, anos depois.

Por Reginaldo Vasconcelos         

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