A TRANSIÇÃO
Rui Martinho Rodrigues*
Todo tempo é tempo de transição, dizem os seguidores de Heráclito de Éfeso (540 a. C.– 470 a.C.), para quem não se toma banho duas vezes no mesmo rio, pois o rio e o homem já não são os mesmos. Tal ênfase na mudança inviabiliza as referências e sentidos. No polo oposto Parmênides de Eleia (530 a. C – 460 a.C.), disse que a essência das coisas não muda. A divergência permanece. Não pretendemos resolvê-la.
Existem diferentes ritmos de transformações históricas. Fernand Braudel (1902 – 1985) identificou três compassos históricos. Há transformações cotidianas, como as da indumentária, geralmente rápidas. A organização social, porém, é modificada mais lentamente, embora possa ser acelerada em certos momentos. Pode, ainda, haver organização de formas variadas, mas com algum aspecto de longa duração. Os sistemas de parentesco têm algo invariável, como a exogamia, que segundo Claude Lévi-Strauss (1908 – 2009), é comparável a concepção de essência imutável de Parmênides. O controle social, sem embargo de suas variadas formas e graus, sempre se faz presente com o amparo de alguma forma de hierarquia, poder e vigilância (Michel Foucault, 1926 – 1984, em “Vigar e punir”), configurando longa duração.
O momento é de transformações rápidas. Aspectos estruturantes da sociedade estão mudando. O equilíbrio entre nações mudou e provocou reflexos nas relações entre elas. Inovações tecnológicas modificaram a cultura de massa e impactaram na política. Atores não estatais, como as redes sociais ou entidades como o Greenpeace, ganharam protagonismo inédito desde que os estados nacionais centralizaram o Poder. Partidos políticos sofreram desgaste no mundo inteiro. Criou-se um vácuo político e o populismo o preencheu. A interdependência e o multilateralismo despertaram em muitos a sensação de perigo e a atitude de defesa em face do neocolonialismo, oculto sob a pele da governança mundial.
O enfraquecimento dos estados divide a soberania e as lealdades nacionais com vários outros vínculos, como na Idade Média, quando o feudo, o reino, o Império e a Igreja formavam camadas de compromissos no conjunto das relações sociais, como assinala Joseph Samuel Nye Júnior (1937 – vivo), na obra “Os paradoxos do Poder americano”. A rádio difusão contribuiu para o surgimento de lideranças populistas e totalitárias, ainda segundo Nye. O impacto das tecnologias digitais é muito maior. Fortaleceu o poder brando, que obtém colaboração sem usar a força ou intimidar. Aumentou a articulação de setores não estatais, mas ampliou as possibilidades de controle do poder central, que agora tudo vigia, como na ficção de Georg Orwell (Eric Arthur Blair, 1903 – 1950), na obra “1984”. A inteligência artificial, por outro lado, pode aumentar o poder bruto.
O poder, no momento, se desloca do ocidente para o oriente; das democracias para os regimes fortes. A mistura da razão teorética, herdeira da Filosofia grega, com o pragmatismo romano e com o teocentrismo judaico-cristão está em desvantagem na competição com a tradição islâmica e com a sabedoria oriental. A autocrítica da tradição grega, levada ao extremo, gerou desorientação, relativismo, niilismo e hedonismo. A civilização grega, quando decadente, deu lugar aos eruditos da Sofística, com relativismo, ceticismo, retórica, convencimento e desonestidade intelectual. A dissolução dos costumes e a instabilidade se fizeram presentes. Roma também decaiu assim. O constante devir é instabilidade em grau incompatível com as instituições, cujos “tripulantes”, como a mulher de Cesar, além de honestos, devem parecer honestos. Suspeitas de fraudes ou decisões casuísticas, por exemplo, deveriam ser afastadas.
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