FUNDAMENTOS
POLÍTICOS
Rui Martinho Rodrigues*
Categorias teóricas podem direcionar o conhecimento. Clãs, tribos, reinos ou feudos, classes sociais, grupos identitários, Estados nacionais ou impérios e civilizações são exemplos de agrupamentos utilizados como categorias de análise no esforço de compreensão do mundo.
O reducionismo tem levado estudos baseados em apenas uma categoria de análise. Trata-se de conduta admissível quando o objetivo se circunscreve a uma peculiaridade exclusiva do grupo em estudo. Uma tribo de vida simples, sob isolamento geográfico e cultural pode ser estudada sem a ajuda de muitas categorias de análise. Estudos amplos, tendo como objeto realidades complexas exigem muitas categorias teóricas em seu estudo. Arnold Joseph Toynbee (1889 – 1975) estudou civilizações como categoria principal de análise. Precisou, todavia, examinar organização, costumes e valores das unidades menores, constitutivas do maior objeto de seus estudos, escapando assim ao reducionismo.
As classes sociais têm sido usadas como única
variável havida como independente. Não é preciso debater o fato de que toda
variável depende de alguma coisa, que desviaria a nossa reflexão para o exame
da classificação das variáveis como dependentes ou independentes. Fenômenos
complexos, como as relações econômicas ou políticas em uma sociedade evidenciam
a fragilidade de estudos baseados em uma só categoria de análise. O
entendimento segundo o qual toda a história, entendida como fatos e atos, não
como uma disciplina específica, se resume na luta de classe, conforme Karl
Heinrich Marx (1818 – 1883) tem tido o seu reducionismo explicado como devido aos
tropos da linguagem. Caso a justificativa se aplique a todas as correntes de
pensamento poderá ser um argumento aceitável, a depender de outros fatores.
Reducionismo e especialistas
Especialistas podem incorrer em simplificações
reducionistas. Considerações apriorísticas podem conduzir a graves equívocos. O
pensador político Yoshihiro Francis Fukuyama (1952 – vivo), na obra “O fim da
História e o último Homem” concluiu, como especialista em política, que a
democracia parlamentar seria a mais perfeita forma de organização política. Não
mais haveria possibilidade de evolução. O reducionismo político do pensador
nipo-americano aceitou como premissa ideia de George Wilhelm Friedrich Hegel
(1770 – 1831), que vaticinava o fim da história quando a humanidade atingisse o
ápice de suposta evolução chegando a igualdade jurídica.
Progresso como desenvolvimento cognitivo
Aceitar a trajetória humana como evolutiva em razão do desenvolvimento cognitivo, a exemplo do positivismo de Isidore Aguste Marie François Xavier Comte (1798 – 1857) é falacioso. Tal desenvolvimento não guarda relação com o aperfeiçoamento do caráter. A evolução é observável na ciência e na tecnologia. A física de Isaac Newton (1643 – 1727), até hoje usada nas engenharias e em tantas outras coisas, é superior às especulações de Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) no campo da Physis. Estas nunca foram testadas e entravaram o crescimento da ciência por muito tempo. Nada disso diminui a grandeza do Estagirita ou de suas contribuições no campo da Filosofia. As suas reflexões eram filosóficas e em grande parte têm valor mais pelas questões que suscitaram que pelas respostas dadas.
A tecnologia soluciona problemas práticos valendo-se da ciência. Evolui rapidamente. Promove a solução de problemas práticos. Aviões atualmente produzidos são superiores ao 14-bis. Na Antiguidade os gregos cantaram as maravilhas da inventividade humana. Heróis como Prometeu e depois Palamedes, suscitam admiração pela inventividade. Ésquilo (525 – 455) e Sófocles (496 – 405) registram louvores aos homens criativos. Invenções como números, letras, medidas, arado, domesticação de animais e medicina foram louvadas. Tudo isso no campo da técnica. Não há referência a evolução humana, do ponto de vista axiológico. A deusa Fortuna representava uma instabilidade que afastava a ideia de progresso. Demócrito de Abdera (460 a. C. – 370 a.C.) afastou a instabilidade da intervenção dos deuses, mas seu pessimismo moral manteve distância da ideia de progresso como evolução do homem.
O desenvolvimento cognitivo da humanidade é notório. Trata-se, todavia, de manifestação diferenciada em campos distintos. A Filosofia evoluiu lentamente. A ciência evolui um pouco mais rápido, já que após a Revolução Científica do século XVII contam-se poucas revoluções na ciência. A Teoria da Relatividade, a Teoria Quântica e, se considerarmos revolucionárias no sentido definido por Thomas Samuel Kuhn (1922 – 1996), na obra “A estrutura das revoluções científicas”, os avanços do eletromagnetismo, para citar a Física, são algumas das poucas revoluções aludidas. Na Biologia a descoberta dos micróbios, que aniquilou a teoria miasmática; e a descoberta do código genético são avanços revolucionários. Aperfeiçoamentos verificados quotidianamente não passam de complementos às poucas inovações revolucionárias, conforme Kuhn.
A Filosofia registra avanços lenta e progressivamente acumulados. Autores da Antiguidade ainda são estudados porque muitas de suas contribuições permanecem válidas. A arte, porém, não permite o registro de uma marcha de aperfeiçoamento progressivo ao longo do tempo.
O Direito tem evoluído como ordenamentos jurídico. Mas não é uma marcha linear. No campo de Zetética, por outro lado, o Jusnaturalismo não propicia o entendimento da essência do Direito como evolução histórica. A vertente cosmocêntrica, fundada na ideia de uma razão cósmica, e a tendência teocêntrica, ambas do Direito Natural, não são compatíveis com a evolução citada. Observam-se avanços e retrocessos no campo do direito positivo, o que desautoriza a ideia de evolução linear do saber jurídico. O caráter polêmico do que seja aperfeiçoamento, no campo jurídico, conduz a uma aporia no caminho da concepção evolutiva do Direito.
Jacques Le Goff (1924 – 2014), na obra “História e memória”, registra também a evolução das instituições sociais. Não inclui neste processo a evolução do homem, no sentido axiológico. Ressalta que os gregos nem sequer tinha uma palavra para “progresso” e os latinos davam um sentido material para este vocábulo.
A evolução do homem pelo aperfeiçoamento da
sociedade foi estimulada pelo iluminismo, mas não encontra arrimo em nenhum dos
aspectos aludidos. A Revolução Científica do século XVII, com seus êxitos
espetaculares, fortaleceu o pensamento que pretende criar uma ordem social
perfeita, como base na ciência sólida como a Física de Newton. O homem,
beneficiado por tal ordem, seria aperfeiçoado. O bom selvagem, como uma Fênix,
ressurgiria das cinzas de uma idade de ouro. O arquétipo de uma época
maravilhosa perdida, como nos mitos de inúmeros povos, sempre esteve presente
no pensamento político, conforme demonstra Raoul Girardet (1917 – 20113) na
obra “Mitos e mitologias políticas”.
A epistemologia da pretensão demiúrgica
A epistemologia invocada para validar a presunção demiúrgica dos defensores da sofocracia destinada criar um novo homem, explicitamente ou não, tem raízes no monismo metodológico. Trata-se de uma teoria do conhecimento que defende o mesmo método e o mesmo status de cientificidade para as ciências da natureza e as da cultura. O caráter nomológico dos saberes humanísticos apresentou-se com tendo a força das leis em sentido científico. Isto é: reunindo (i) fatores em (ii) condições dadas (iii) levando necessariamente a um resultado previsto. Previsão e certeza estariam presentes. A reengenharia social estava posta.
A possibilidade de reunir todos os fatores
pertinentes aos fenômenos sociais e a recorrência dos fenômenos são tidas como
certas pelo monismo metódico. O socialismo real é exemplo da sofocracia
exercida em nome da classe trabalhadora por quem “cientificamente sabe” qual é
a verdadeira consciência proletária, conforme Lênin (Vladimir Ilyich Ulianov,
1870 – 1924) na obra “O que fazer?” A dialética para Lucio Coletti (1924 –
2001) é uma senhora de costumes cognoscitivos fáceis. Ela permite que sem
experiência proletária intelectuais cheguem a “verdadeira consciência” dos
trabalhadores, afirmando ao mesmo tempo que não é a consciência que faz a
experiência, mas o contrário, conforme o próprio Marx, na obra “A ideologia
alemã”.
O mar de cabeças degoladas pela “fraternidade” da Revolução Francesa teve amparo no “esclarecimento” dos iluministas. Os novos senhores da verdade substituíram o dogmatismo do clero pelo dogmatismo de uma “ciência” nomológica. Sem muita responsabilidade pensadores imaginaram um estado de natureza idílico entre os índios do Brasil, dos quais só tinha notícias pelo relato de viajantes, conforme estudo de Affonso Arinos de Mello Franco (1930 – 2020), na obra “O índio brasileiro e a Revolução francesa: as origens brasileiras da teoria da bondade social”. Esta foi a inspiração do bom selvagem, que tendo nascido bom, foi corrompido pela sociedade (Jean-Jacques Rousseau, 1712 – 1778). O pensador citado nunca explicou quem corrompeu a sociedade composta por indivíduos nascidos bons. Defensores da sofocracia usam o disfarce da vontade popular. Algo como a vontade geral de Rousseau, domesticada pela arregimentação e por promessas do messianismo secular. Fazem-se muitos prosélitos desse modo. Reducionismos de classe, de raça e do conflito criam dicotomias simplistas e sedutoras.
Diversamente das doutrinas “esclarecidas”, o
falibilismo de John Locke (1632 – 1704) não tem o apelo messiânico ou o
atrativo da “certeza” científica. Os empiristas britânicos e o racionalismo
crítico de Karl Raymond Popper (1902 – 1994) afastam o totalitarismo destruindo
a legitimação do cientificismo. O pressuposto segundo o qual o homem se
pertence e o falibilismo protegem a liberdade. Por outro lado, a ideia de que o
homem pertence à família; a uma organização confessional ou partidária; ao
Estado ou a pátria legitimam tanto o autoritarismo revolucionário como o
conservador. O totalitarismo exige o sentimento demiúrgico que só o
cientificismo e as religiões civis permitem.
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