RAÍZES DO
PENSAMENTO POLÍTICO
Rui Martinho Rodrigues*
Tendências políticas aglutinam pessoas, inspiram dedicação e até sacrifício. Seduzem. Oferecem vantagens casuísticas e apelam aos princípios mais nobres e altruísticos.
Os alicerces teóricos e metodológicos dos belos discursos não são apreendidos claramente pelos que empunham bandeiras com os rótulos doutrinários e ideológicos.
A forma de organização social e política é consectária dos pressupostos antropológicos, do campo da filosofia dos valores, como da teoria do conhecimento, ao lado dos pressupostos históricos, sociais, econômicos e jurídicos.
Discernir a lógica que articula tudo isso para compor uma tendência política é imprescindível para o pretendido esclarecimento. Isso exige análise transdisciplinar.
Mas será que os seguidores das ideias políticas têm o domínio do conjunto de conceitos e categorias teóricas do léxico de cada doutrina? Têm consciência da trama composta por tais elementos, ao modo de uma sintaxe do pensamento político? As correntes políticas são internamente coerentes?
O próprio fenômeno social nem sempre é
coerente, admitindo-se a contradição como fenômeno humano, contrariando Georg
Wilhelm Friedrich Hegel (1770 – 1831), para quem o real seria racional.
Políticas são concebidas para o Homo
sapiens e por ele. Deveríamos, pois, começar pelo exame da influência que a
Filosofia Antropológica exerce sobre as ideias políticas.
Quem é o homem
A diversidade de concepções acerca do homem exige, no espaço de um ensaio resumido e despretensioso, uma reflexão expressa de modo esquemático, sem reducionismo, cotejando, para tanto, pares antinômicos, com indicações de pensadores das correntes aludidas.
O homem como animal político (Aristóteles, 384 a.C. – 322 a.C.), não é um animal solitário como o tigre, nem se associa como abelhas, com divisão das funções fisiológicas (só a rainha põe ovos) e repetição invariável do padrão de organização. Estas, em antigos manuais de biologia, eram havidas como insetos sociais coletivistas.
A sociedade humana é como a dos animais sociais referidos nos manuais aludidos como sociedades individualistas, a exemplo das alcateias, cuja inovação e criatividade estão presentes, ainda que limitadamente.
Animal político significa necessitar, para sobreviver, associar-se aos semelhantes; ter capacidade de conceber e executar diferentes formas de organização para atender aos objetivos que é capaz de idealizar. Tal associativismo é fácil, natural e espontâneo, no sentido de naturalmente harmonioso? Ou é difícil, conflitivo e tendente aos sentimentos e atos de insatisfação? A visão apolínia da vida em sociedade, o que vale dizer, da história, expressa no bom selvagem (Jean-Jacques Rousseau, 1712 – 1778) imaginado por iluministas desinformados sobre os índios do Brasil, segundo Affonso Arinos de Mello Franco (1930 – 2020), na obra “O índio brasileiro e a revolução francesa”.
O bom selvagem supõe uma a sociedade em que todos andavam nus era harmoniosa, composta por inocentes, modelo de estado de natureza. Os primeiros registros sobre o Brasil passaram a imagem edênica, conforme Sérgio Buarque de Holanda (1902 – 1982), na obra “Visão do paraíso”.
Formando um par antitético, para fins de raciocínio, temos do outro lado o porco-espinho, que se aconchega para sobreviver ao frio do inverno, mas sofre e infringe espetadas, na expressão de Arthur Schopenhauer (1788 – 1860). Séculos antes Thomas Hobbes (1588 – 1679) havia considerado o homem como o lobo do homem. A sociabilidade forçada, cheia de feridas é a de um animal social a contragosto, de convivência conflitiva e difícil é um convite a concepção de Estado forte, controlador, ao modo do Leviatã hobbesiano, e do Príncipe de Nicolau Maquiavel (1469 – 1527).
A Antropologia Filosófica que concebe o homem angelical convida a imaginação a pensar um mundo paradisíaco, livre de conflitos e insatisfações, utópico. Pode, ainda, desencadear paixões e legitimar o “ódio do bem”, capaz de usar ou admirar quem usou guilhotina, paredão, arquipélago Gulag, pirâmides de crânios.
A visão da Antropologia Filosófica do homem ao modo do porco-espinho, semelhante ao do homem lobo do homem concebeu, como dito, o Estado Leviatã, poder incontrastável, irresistível. A influência das concepções de homem sobre a política, porém, pode não ser tão grande. O bom selvagem pode exigir apenas o jogo de aparências que o lobo do homem despreza, ostentando a violência.
Um terceiro tipo de pressuposto antropológico, presente em John Locke (1632 – 1704), é o de um homem que nasce uma página em branco. O que se escreve em tal página não está definido. Não nasce predador, não concebe a guerra de todos contra todos como o estado de natureza.
Não tem o bom selvagem que pode dispensar a normatividade social formulada pela alteridade. Não acredita no sonho de emancipação como uma ordem social harmoniosa em que cada um faz a própria lei, seguindo uma razão unívoca, proporcionando harmonia entre todos. A lei, nesta concepção, resulta de um contrato social feito para defender interesses previamente estabelecidos: vida, liberdade e propriedade.
A sociedade apolínia e a dionisíaca são,
respectivamente, o corolário da Antropologia Filosófica angelical e lupina. A sociedade
edênica é um valor elevado, “legitima” toda torpeza (ética teleológica).
Historicamente as grandes violências invocaram os mais altos valores, inclusive
uma ordem paradisíaca.
Destinatários e usufrutuários do pacto social
A anterioridade lógica e axiológica deve ser da pessoa ou, ao contrário, da sociedade? Este é outro par antitético polarizador das ideias políticas. Analogamente ao dito bíblico, segundo o qual o sábado (vetusta lei trabalhista) foi feito para o homem, não o homem para o sábado (Lucas 6: 1-5), a vertente do pensamento político que percebe o associativismo como feito para proteger os interesses dos associados, reconhecendo a anterioridade lógica e axiológica da pessoa, não da sociedade tende a respeitar os direitos individuais. Limita os poderes outorgados aos governantes pelos governados.
Entender que anterioridade lógica e axiológica é da coletividade, não do indivíduo, tende a subsumir todos os direitos da pessoa ao que determina o governo, supondo (ingenuamente?) que este represente sempre o interesse coletivo e que uma sociedade possa se beneficiar prejudicando os associados.
Supõe, ainda, que os interesses coletivos são sempre harmônicos com os direitos individuais ou não reconhece direitos individuais a salvo da coletividade. O homem feroz “legitima” o domador por necessidade de ser controlado. O homem angelical convida ao sonho do abolicionismo penal, a sociedade sem controles e sem vigilância. O homem não determinado foge aos dois extremos. O usufruto do pacto social pode ser do homem comum. Aceita a visão do homem lupino, porém, a fruição acaba sendo da “Nova classe” (Milovan Djilas, 1911 – 1995) ou de um estamento “mais igual” na sociedade de “iguais” (George Orwell, 1903 – 1950, na obra “A revolução dos bichos”).
O conflito como motor da história é
inseparável do homem lupino e seus desdobramentos analisados. O fundamento da
consciência “esclarecida”, porém, exige uma reflexão. Os porcos da “Revolução
dos bichos” e a “Nova Classe” têm a “consciência verdadeira”?
Epistemologia e política
A “função sintática” do homem lobo e a do bom selvagem é legitimar a reengenharia da sociedade. O homem feroz “legitima” meios violentos (Friedrich Nietzsche, 1844 – 1900). O bom selvagem tem a “função sintática” de legitimar o “ódio do bem”, com guilhotina, paredão e pirâmide de crânios. Ambos os caminhos derramaram rios de sangue e pouco ou nada construíram. A legitimação requer fundamentos sólidos. A ciência é um trunfo poderoso do discurso de poder. A “certeza científica” tenta legitimar ambições e paixões em detrimento dos direitos individuais.
Promessas de bem-estar material, igualdade, autonomia e de felicidade precisam de credibilidade. Fracassos históricos de tais promessas não são empecilho. Todos querem acreditar que só não são felizes, não tiveram sucesso porque “o sistema” ou “os opressores” dificultam e exploram.
Vladimir Ilyich Ulianov (Lênin, 1870 – 1924), na obra “O que fazer”, diz explicitamente que quem tem o conhecimento não precisa consultar o número (maioria, eleitores). O “socialismo científico”, uma epistemologia da certeza, bastava.
O positivismo de Isidore Auguste Marie François
Xavier Comte (1798 – 1857) esgrimia uma epistemologia da certeza. O
neopositivismo, ou positivismo lógico, do círculo de Viena, acrescentou um
reforço ao conhecimento “comprovado”, aprofundando um tipo de racionalismo de
inspiração matemática, revigorou a epistemologia da certeza positivista
repaginada. Positivismos e socialismo, ambos “científicos” invocam “certezas
científicas” contraditórias.
Resultados históricos
Karl Raymond Popper (1902 – 1994) feriu
gravemente a ideia de certeza científica. Demonstrou que a suposta prova é
apenas a superação de uma tentativa de falseamento do discurso. Não significa
que a proposição que sobreviveu a uma prova tenha o mesmo desempenho em provas
futuras. Adotou o conceito de validade transitória, em lugar de prova,
valendo-se de vigorosa crítica da indução. Uma pretende ser definitiva. A outra
só canta vitória sobre o que já passou. Quem não tem certeza dos resultados dos
seus projetos não derruba a própria casa sem saber se fará uma casa melhor. A
validade transitória se distingue do relativismo pelo compromisso com a
validação.
Engenharia não se faz com incerteza. Empiristas britânicos, também esgrimindo a crítica da indução, tomaram o caminho conservador. Locke, também trilhando a senda do empirismo, concebeu uma ordem liberal. Popper, com o racionalismo crítico, também chegou ao liberalismo.
Isto
é: a epistemologia da incerteza ou falibilismo pode abrir caminho tanto ao
conservadorismo como ao liberalismo, não fundamenta, porém, o totalitarismo,
embora o relativismo laxista, diversamente do falibilismo crítico, se preste a
tudo. A epistemologia da certeza, historicamente tem favorecido o autoritarismo
e o totalitarismo, assim como as Antropologias Filosóficas do homem lupino e do
bom selvagem.
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