O ARGUMENTO LIBERAL
Rui Martinho Rodrigues*
Quem declara uma identidade política pode aludir a diferentes
conjuntos de concepções políticas. O socialismo tem mil e uma faces.
Conservadores também não têm unidade ideológica ou programática. Liberalismo
pode vir acompanhado de alguns adjetivos. Tanto para os que se declaram
liberais, como para os seus críticos, o conceito é polissêmico. Liberalismo
estritamente econômico é outra coisa: “liberismo”. Nos limites destas reflexões
examinaremos, em apertada síntese, o liberalismo político.
John Locke (1632 – 1704) é um dos mais destacados pensadores
liberais. As fundações das suas concepções políticas são o falibilismo e a
defesa de três categoria de bens jurídicos: vida, liberdade e patrimônio.
Muitos confundem (inadvertidamente ou para desqualificar) o o conceito mais amplo de “bens
jurídicos” com o mais restrito de “bens materiais”, como se Locke defendesse só o patrimônio físico.
O falibilismo é a compreensão de que todo pensamento é susceptível
ao erro. Assim, nas Cartas Sobre a Tolerância, o autor citado adverte que as
concepções religiosas, políticas e de toda espécie, sendo sujeitas à
falibilidade humana, não devem encarar a divergência como absurdo, erro ou
heresia. Daí a necessidade de convivência pacífica com as concepções
contrárias, já que estas podem estar certas e as nossas podem estar erradas. Isso afasta a
reengenharia social e antropológica. Só infalíveis querem criar um novo homem, criando uma nova sociedade, um mundo melhor, sem base em uma ciência exata.
Promessa maravilhosa serve para legitimar torpeza. O historiador Eric John
Ernest Hobsbawm (1917 – 2012), militante comunista, reconheceu este argumento
liberal como válido (O Novo Século, Companhia das Letras, 2009).
A defesa da vida sustentada pelo pensador liberal fortaleceu as
ideias contrárias à pena de morte, encorajando a tendência para restringir cada
vez mais o seu uso. É um tema controverso. Norberto Bobbio (1909 – 2004), na
coletânea A era dos direitos, ressaltou a tendência histórica para restringir o
uso da pena capital. O Brasil é exemplo dessa restrição, limitando-a aos casos
de traição nacional em tempo de guerra.
Os liberais defendem a liberdade para fazer e agir (José Guilherme
Merquior, 1941 – 1991). Libertários, diversamente, defendem a liberdade de ser.
Disponibilizar a dimensão ôntica, colocando-a sob o controle da volição do
sujeito não é liberdade, mas voluntarismo. A essência do ser não é disponível.
A teoria do ser, em Aristóteles (384 aC – 322 aC.), é a reunião de forma e
matéria (matéria + forma= sínolo). Uma estátua equestre tem forma (cavalo) e
matéria (bronze).
A liberdade deve ter limite no direito de outrem. O fundamento
disso é uma Antropologia Filosófica, segundo a qual o homem se pertence. Mas não
existe direito absoluto. Alguns bens jurídicos são indisponíveis: a vida, a integridade física, a liberdade e a dignidade da pessoa. Os três primeiros são
conceitos claramente delimitados. Já dignidade é um critério indeterminado, e por isso
polêmico. A convivência pacífica exige que a normatividade social defina os
limites da liberdade. Isso distingue o liberalismo de permissividade.
A normatividade social precisa da proteção do Estado. Isso
distingue o liberalismo de anarquismo. Autoridade dos governantes deve ser
consentida pelos governados e a liberdade de agir encontra limite apenas na
lei, não se subordinando às concepções de algum pensador supostamente genial. A
boa norma é aquela que limita o poder do mais forte, do tipo que reprime roubo,
homicídio, cobrança de impostos sem autorização legal anterior e condenação sem
o devido processo legal, contendo o mais forte. O liberalismo é o governo das
leis, não dos homens. Não empondera ninguém. As democracias liberais têm um
histórico de sucessos e fracassos, superando assim as fórmulas supostamente
geniais que só colecionam fracassos.
A igualdade defendida pelos liberais é a de oportunidades, não de
resultados, abrangendo a igualdade de alguns em algo (como as aposentadorias
especiais e os direitos das minorias) e de todos em algo, como a obrigação de
obedecer a lei. Não sendo utópico, não esconde o que fazer com a divergência e
a oposição: tolerância quando não viole a lei e as penas previamente definidas
para o crime. Não é concebida para anjos, afastando-se da República, obra de
juventude de Platão (427/28 aC. – 347/47 aC.), e aproximando-se de As Leis,
obra de maturidade do autor citado, na qual ele repudiou a República, dizendo
que exigiria uma sociedade de anjos, enquanto As Leis seria uma fórmula
política para uma sociedade de humana.
Porto Alegre, 6 de fevereiro de 2019.
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