quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

ARTIGO - O Argumento Liberal (RMR)


O ARGUMENTO LIBERAL
Rui Martinho Rodrigues*



Quem declara uma identidade política pode aludir a diferentes conjuntos de concepções políticas. O socialismo tem mil e uma faces. Conservadores também não têm unidade ideológica ou programática. Liberalismo pode vir acompanhado de alguns adjetivos. Tanto para os que se declaram liberais, como para os seus críticos, o conceito é polissêmico. Liberalismo estritamente econômico é outra coisa: liberismo. Nos limites destas reflexões examinaremos, em apertada síntese, o liberalismo político.

John Locke (1632 – 1704) é um dos mais destacados pensadores liberais. As fundações das suas concepções políticas são o falibilismo e a defesa de três categoria de bens jurídicos: vida, liberdade e patrimônio. Muitos confundem (inadvertidamente ou para desqualificar)  o o conceito mais amplo de bens jurídicos com o mais restrito de bens materiais, como se Locke defendesse só o patrimônio físico.

O falibilismo é a compreensão de que todo pensamento é susceptível ao erro. Assim, nas Cartas Sobre a Tolerância, o autor citado adverte que as concepções religiosas, políticas e de toda espécie, sendo sujeitas à falibilidade humana, não devem encarar a divergência como absurdo, erro ou heresia. Daí a necessidade de convivência pacífica com as concepções contrárias, já que estas podem estar certas e as nossas podem estar erradas. Isso afasta a reengenharia social e antropológica. Só infalíveis querem criar um novo homem, criando uma nova sociedade, um mundo melhor, sem base em uma ciência exata. Promessa maravilhosa serve para legitimar torpeza. O historiador Eric John Ernest Hobsbawm (1917 – 2012), militante comunista, reconheceu este argumento liberal como válido (O Novo Século, Companhia das Letras, 2009).

A defesa da vida sustentada pelo pensador liberal fortaleceu as ideias contrárias à pena de morte, encorajando a tendência para restringir cada vez mais o seu uso. É um tema controverso. Norberto Bobbio (1909 – 2004), na coletânea A era dos direitos, ressaltou a tendência histórica para restringir o uso da pena capital. O Brasil é exemplo dessa restrição, limitando-a aos casos de traição nacional em tempo de guerra.

Os liberais defendem a liberdade para fazer e agir (José Guilherme Merquior, 1941 – 1991). Libertários, diversamente, defendem a liberdade de ser. Disponibilizar a dimensão ôntica, colocando-a sob o controle da volição do sujeito não é liberdade, mas voluntarismo. A essência do ser não é disponível. A teoria do ser, em Aristóteles (384 aC – 322 aC.), é a reunião de forma e matéria (matéria + forma= sínolo). Uma estátua equestre tem forma (cavalo) e matéria (bronze).

A liberdade deve ter limite no direito de outrem. O fundamento disso é uma Antropologia Filosófica, segundo a qual o homem se pertence. Mas não existe direito absoluto. Alguns bens jurídicos são indisponíveis: a vida, a integridade física, a liberdade e a dignidade da pessoa. Os três primeiros são conceitos claramente delimitados. Já dignidade é um critério indeterminado, e por isso polêmico. A convivência pacífica exige que a normatividade social defina os limites da liberdade. Isso distingue o liberalismo de permissividade.

A normatividade social precisa da proteção do Estado. Isso distingue o liberalismo de anarquismo. Autoridade dos governantes deve ser consentida pelos governados e a liberdade de agir encontra limite apenas na lei, não se subordinando às concepções de algum pensador supostamente genial. A boa norma é aquela que limita o poder do mais forte, do tipo que reprime roubo, homicídio, cobrança de impostos sem autorização legal anterior e condenação sem o devido processo legal, contendo o mais forte. O liberalismo é o governo das leis, não dos homens. Não empondera ninguém. As democracias liberais têm um histórico de sucessos e fracassos, superando assim as fórmulas supostamente geniais que só colecionam fracassos.

A igualdade defendida pelos liberais é a de oportunidades, não de resultados, abrangendo a igualdade de alguns em algo (como as aposentadorias especiais e os direitos das minorias) e de todos em algo, como a obrigação de obedecer a lei. Não sendo utópico, não esconde o que fazer com a divergência e a oposição: tolerância quando não viole a lei e as penas previamente definidas para o crime. Não é concebida para anjos, afastando-se da República, obra de juventude de Platão (427/28 aC. – 347/47 aC.), e aproximando-se de As Leis, obra de maturidade do autor citado, na qual ele repudiou a República, dizendo que exigiria uma sociedade de anjos, enquanto As Leis seria uma fórmula política para uma sociedade de humana.

Porto Alegre, 6 de fevereiro de 2019.


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