terça-feira, 13 de maio de 2014

LÍNGUA DE CAMÕES


NOSSO DOLO, CULPAS NOSSAS
Vianney Mesquita*

Apenas o influxo da arte comunica durabilidade à escrita humana, só ele marmoriza o papel e transforma a pena em escopro. (RUI Caetano BARBOSA de Oliveira).




Parece-nos fenecer alegação lógica àqueles que inadmitem o emprego facultativo do plural em certos substantivos, quando expressos de par com as unidades vocabulares nosso, vosso e outros possessivos, em suas naturais e corretas variações desinenciais.

Em sua maioria, os nomes são passíveis de comportar modificações flexionais, mormente em relação a número – flexão nominal ou verbal indicativa da existência de um ou mais.

Sucede, entretanto – e não raro – que a aplicação indiscriminada, na dependência da conformação fraseológica, do plural ou do singular, pode afear o torneio e, dessarte, comprometer o escrito, muito especialmente sendo o caso de tecedura literária.

A Língua de Paulo Maria de Aragão conserva em guarda extremos recursos, tanto no que concerne à sua impressionante polissemia, como no pertinente às incontáveis maneiras de estruturar a mensagem. É uma como linguagem musical, cuja combinação das notas, dissonantes e outros aprestes da codificação desta Arte reverterá na gradação do belo, variando até o feio.

Há tantos recursos, que existem tantos homens e igual quantidade de estilos, rememorando a célebre asserção leclercana, a que recorremos há alguns dias aqui neste espaço, para falar de elocução literocientífica (Modismos e Bobices do Discurso Verbal), quando Leclerc, Conde de Buffon, lobriga o estilo de acordo com a personalidade do estilista.

Achou-se por bem, exempli gratia, traduzir no plural o Padre Nosso dos católicos “... perdoai as nossas dívidas, assim como perdoamos nossos devedores” (dívidas, hoje, traduzidas em “ofensas”), com o pronome possessivo e o substantivo pluralizados. Bem que podiam ser, também, cunhadas as expressões a nossa dívida, a de todos, o débito global, o passivo da Humanidade com relação à falta geral (o pecado) ou às faltas gerais (os pecados).

Já com o substantivo dolo (ô), na primeira e mais relevante acepção em Língua Portuguesa (“astúcia ou artifício empregado para enganar e prejudicar alguém; má-fé, fraude ou traição...”- conforme o Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa-Aulete – 2. Ed. brasileira), quiçá resulte desaconselhável o emprego grafando dolos ou nossos dolos, exatamente pela sensaboria do estilo, conquanto gramaticalmente corretas ambas as locuções.

Para crime, que assume dolo e culpa, ex positis, pensamos ser indiferente o uso, no singular, como no plural, quando das generalizações, em nosso crime ou nossos crimes. “Nosso crime foi responsável pela Crucifixão”, ou seja, a iniquidade humana levou Cristo à morte de cruz; ou em: “nossos crimes levaram Jesus Cristo à morte de cruz”, no plural, sem deslustrar e tampouco enriquecer a sentença.

Com a dicção culpa, nas variegadas intenções que conota (“violação ou inobservância de uma regra de conduta, que produz lesão do direito alheio”; ou “falta voluntária de diligência ou negligência, ato de imprudência ou imperícia, sem propósito de lesar, mas de que resultou a outrem  dano ou ofensa de seus direitos [...] pecado, delito, responsabilidade, causa de um mal etc – Aurélio), podem ser torneadas frases, em ambos os números, como na acepção do vocábulo responsabilidade, verbi gratia: “O Brasil constitui nação do Terceiro Mundo, Estado periférico, por culpa nossa” (responsabilidade nossa).

A expressão pode ser levada, permutatis, permutandis, para o plural, inclusive para adorno do estilo, quando menos para a fuga do trivial, como assim: “nossas culpas nos responsabilizam pelo atual status quo no País”, ou “Por culpas nossas, o Brasil encontra-se perto do caos”; “de quem é a culpa?” “ De quem são as culpas?”.


Sem nos arvorar de douto na temática, modestamente entendemos que pluralizar ou permitir a permanência no singular, nos casos dos quais nos ocupamos, é tão-só uma questão de aprimoramento do estilo, porquanto em um número como no outro, a língua de Estêvão Cruz e do nosso conterrâneo e patrono na ACLJ José Rebouças Macambira perfaz-se devidamente respeitada.
*Vianney Mesquita 
 Docente da UFC 
Acadêmico Titular da Academia Cearense da Língua Portuguesa  
Acadêmico Emérito-titular da Academia Cearense de Literatura e Jornalismo 
Escritor e Jornalista.

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