quinta-feira, 13 de julho de 2023

ARTIGO - Os Arautos da Revolução Cultural (RMR)

 OS ARAUTOS DA
REVOLUÇÃO CULTURAL
Rui Martinho Rodrigues*

 

 

As transformações históricas 

As profundas transformações históricas das décadas recentes merecem mais atenção por parte de todos. Reconhecemos que na origem da revolução cultural em curso, encontramos a influência da mobilidade geográfica, com os fluxos migratórios e o turismo em grande escala; a secularização da cultura; a banalização resultante da transformação dos mores em folkways e a sociedade líquida descrita por Zygmunt Bauman (1925 – 2017); as novas tecnologias que promovem uma inundação de informações – nem sempre qualificadas – em tão grande volume que não podem ser processadas, como dito em alguns dos nossos textos. 

Os arautos das transformações culturais 

Os diversos fatores citados não exercem o mesmo grau de influência sobre a mudança cultural, variam em momentos diferentes e de sociedade para sociedade. A ação dos arautos da revolução cultural é relevante. Eles impulsionaram a (i) difusão da cultura letrada aproveitando-se da escolarização universal para fazer proselitismo, conforme denúncia de Pascal Bernardin (1960 – vivo), na obra Maquiavel pedagogo. Contribuíram para (ii) a vulgarização e simplificação de informações sobre fenômenos complexos, divulgando versões vulgares de autores clássicos, conforme Leandro Konder (1936 – 2014), na obra A derrota da dialética. Tais informações foram, muitas vezes, eivadas de reducionismos. Exploraram mágoas, sentimentalismo, vitimização, introduziram maniqueísmos e messianismos seculares. Tudo isso foi levado a cabo por (iii) intelectuais, professores, artistas e celebridades. Estes são os aspectos que examinaremos a seguir. 

A dinâmica da revolução cultural 

A modernidade trouxe a liberdade de agir, sem a qual não há liberdade de consciência. A dessacralização, também revigorada pelo humanismo do renascimento, restringiu o argumento de autoridade, favoreceu o livre exame, a crítica e a busca do conhecimento. Todas as doutrinas, porém, têm as suas aporias. Afastado o dogmatismo, a solução para os impasses que o debate racional não resolve só encontra solução na negociação, na força ou por escolha da maioria. Os gregos escolheram substituir a violência pela escolha racional, debatendo na ágora para votar em seguida (Olivier Nay, na obra História das ideias políticas). A democracia dava assim o seu primeiro passo. 

A Revolução científica do século XVII, com os seus grandes triunfos, introduziu a noção de ciência como um conhecimento diverso da Filosofia, que uniu a observação à razão, corrigindo os próprios erros. O debate sobre os problemas sociais e políticos tomou de empréstimo o rótulo de ciência. Não podendo replicar experimentos como uma revolução, o pensamento social logo escorregou da ciência para o cientificismo. Propostas de reengenharia social e antropológica reivindicaram o status de ciência ou, no mínimo, de pensamento “esclarecido” ou representante de algo “superior”, “evoluído” sob a designação de “progressismo”. 

O Iluminismo, valendo-se destes argumentos, defendeu a liberdade, a igualdade e fraternidade. Ajudado pelas técnicas que facilitaram a difusão de ideias: a imprensa de Johannes Gutenberg (1400 – 1468), que viabilizou os jornais e as enciclopédias com as quais o movimento político encetado por intelectuais logrou fazer a Revolução Francesa. 

A revolução aludida trouxe a “fraternidade” da guilhotina e da violência que tem como exemplo maior o massacre de Vendeia (1793), revolta camponesa violenta e contrarrevolucionária que foi esmagada com brutalidade extrema, deixando um saldo estimado entre cem e duzentos e cinquenta mil mortos, mas que foi esquecida pelos intelectuais. Promoveu a liberdade para os que concordavam com ela e a igualdade de alguns em algo, distinção feita por J. D’Assunção Barros (1957 – vivo), na obra Igualdade e diferença), desequiparando revolucionários e vários segmentos sociais. Culminou com o período que passou para a História como o “reinado do terror”, sob o domínio dos Jacobinos, que eram os revolucionários mais entusiastas. J. Guilherme Merquior (1941 – 1991), em verbete no Dicionário crítico da Revolução francesa, mensionou centenas de milhares de mortos como o número de vítimas da revolução em apreço. 

Finalmente a ordem foi restabelecida com o golpe napoleônico. Mas a promessa já não era de igualdade. A nobreza foi reintroduzida junto com a monarquia. A Revolução, apesar de crudelíssima, é amada pelos (de)formadores de opinião, apesar da violência que protagonizou e do fracasso em introduzir a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Comparada com a Revolução que ocorreu cem anos antes na Inglaterra, a dos franceses perde constrangedoramente. 

A revolução inspirada por John Locke (1632 – 1704), ao norte do Canal da Mancha, não fez massacres e contribuiu mais para a liberdade de agir e de todos em algo, sem tanta efusão de sangue. A Revolução de 1688, na Inglaterra, foi feita para submeter o Estado à Sociedade, por isso foi liberal. A Revolução Francesa de 1789 foi feita para que o Estado “corrigisse” a sociedade, retirando dela os institutos jurídicos e políticos medievais, por isso não era liberal, por mais que os simpatizantes digam o contrário. 

A revolução Francesa passou para a História como burguesa e liberal. Mas quem assediou a Bastilha, incendiou cartórios e invadiu castelos por todo país foram os camponeses, não os burgueses. Quem semeou no coração dos camponeses a promessa de igualdade, liberdade e fraternidade também não foram os burgueses, mas os intelectuais, muitos dos quais foram sustentados pela nobreza que seria decapitada por força das ideias que admirou e financiou. Os revolucionários cortaram algumas despesas do Estado, extinguindo prebendas e subsídios antes dados à nobreza e extinguiram muitos privilégios. Isso pode ter servido de pretexto para que a rotulassem como liberal. O Estado laico foi outro motivo. 

O fervor revolucionário, porém, não é tão laico. Religião é o que oferece (i) transcendência, (ii) radicalidade e (iii) totalidade (Thomas O’Dea, na obra Sociologia da religião). Os demiurgos da sociedade radicalmente nova se transcendem nas lutas históricas por uma classe, pelo nacionalismo ou pela salvação da sociedade como um todo. Desfrutam da radicalidade de doutrinas que explicam os fenômenos históricos em geral desde a causa primeira. Alcançam assim a radicalidade. “Explicam” tudo da origem ao fim, que é uma nova ordem. Doutrinas revolucionárias ou progressistas são religiões políticas. As suas explicações são semelhantes às das religiões, fato registrado por Raoul Girardet (1917 – 2013), obra Mitos e mitologias políticas. Raymond Aron (1905 – 1983) ironizou a religiosidade dos demiurgos da reengenharia social e antropológica na obra O ópio dos intelectuais. 

Invocam em vão o “santo nome” da ciência enquanto praticam o cientificismo, prometem a igualdade de ser, e mais a igualdade positiva e a de resultados, embora instituindo a “Nova classe” que deu título a obra de Milovan Djilas (1911 – 1995), fenômeno designado também como nomenclatura, retratado na obra de Georg Orwell (1903 – 1950) A revolução dos bichos. Mas não se preocupam com as liberdades negativas, salvo quando estão na oposição. Prometem a fraternidade que pode variar da guilhotina ao paredão, passando pelo sistema de gulag. Seduzem apontando culpados para os infortúnios de todos, repetindo a promessa de superação da pobreza sem esforço, pelo patrocínio do Estado, a semelhança do projeto da Torre de Babel (Gênesis 11; 3-6), conforme comparação feita por Michael Oakeshott (1901 – 1990). Sim, pretendem conquistar uma riqueza já existente. Não tratam de produzi-la. 

Os “engenheiros sociais” nunca falam em investimento ou em produtividade, talvez porque a maioria deles não entende os problemas ligados a estes temas. O objetivo é apropriar-se da riqueza, como a Torre de Babel permitiria invadir e apropriar-se do céu. O meio para tanto pode ser o da revolução violenta, como pode ser a conquista da hegemonia ideológica, que legitima a “invasão” ou esbulho possessório, que preferem designar por “ocupação”. Mas o domínio dos corações e mentes é assunto para outra reflexão.

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