quinta-feira, 6 de julho de 2023

ARTIGO - O Ceará Moleque e a Comicidade Cearense (RV)

O CEARÁ MOLEQUE
E A
A COMICIDADE CEARENSE
Reginaldo Vasconcelos*

 

Todo o meio artístico brasileiro tem produzido grandes palhaços, cômicos, comediantes, chargistas, humoristas e cronistas facetos, naturais de todas as latitudes e longitudes do País. 

Desde o gaúcho Aparício Torelly, o Aporelly, dito o Barão de Itararé, até o carioca Jurandyr Czaczkes Chaves, o Juca Chaves, recentemente falecido. 

Passando pelo espano-carioca Oscar Lorenzo Jacinto de la Inmaculada Concepción Teresa Díaz, o Oscarito, e o mineiro Grande Otelo, pseudônimo de Sebastião Bernardes de Souza Prata, grandes ícones do cinema cômico brasileiro dos anos 50/60. 

Costinha, José Vasconcelos, Millor Fernandes, Dercy Gonçalves – uma infinidade de nomes de artistas humorísticos de todos os Estados brasileiros – concluindo a interminável relação com os contemporâneos que já se foram, Jô Soares e Ariano Suassuna, um da Paraíba o outro do Rio de Janeiro. 

Claro que temos os nossos chalaças antigos, por exemplo, Paula Ney e Quintino Cunha, como outras regiões devem ter os seus. E nós temos uma sequência de humoristas cearenses que surgiram na TV, na esteira do grande Chico Anysio, do Renato Aragão, do Tom Cavalcante, do Falcão  e do Tiririca. 

Outros mais recentes, inspirados, influenciados e impulsionados pelos seus antecessores conterrâneos, projetam-se País afora e alegram as noites de casas de show Ceará adentro, e de barracas de praia em Fortaleza. 

Porém, o que marcava o humor cearense, e que a modernidade já extinguiu, era um hábito da cultura interna denominado “molecagem”. 

Moleque é palavra africana no idioma quimbundo, mulêke, com o sentido de “criança” – aliás, correspondente à acepção moderna e carinhosa que se empresta hoje a esse simpático africanismo. 

Todavia, no Ceará, moleques eram os meninos não brancos – negros, indígenas e caboclos, oriundos das classes mais pobres e de famílias periféricas, às vezes agregados ao serviço das casas mais nobres, para dar recados e fazer entregas. 

Geralmente garotos soltos pelas ruas, pouco instruídos e deseducados, dados a brigas entre si, a brincadeiras e a delitos ingênuos de furtar frutas nos quintais e de se dependurar nos bondes, para viajar clandestinamente entre os bairros da cidade.  

Mas em meados do Século XX toda a garotada cearense de classe média-média aderira à molecagem – ao futebol descalço, praticado nas praias, calçadas e calçamentos, e às brincadeiras de rua, como empinar arraias e jogar “bilas” pelas praças. 

Mas, principalmente, mesmo entre adultos jovens, adotou-se o costume moleque pouco civilizado de produzir alarido público em face de incidentes que ensejassem gozação, bem como coisas que merecessem deboche, e pessoas que tangenciassem o ridículo na forma de dizer, agir ou trajar. Isso era a vaia que caracterizava o “Ceará Moleque” – hoje totalmente abolido pelos cânones do “politicamente correto”. 

Houve a famosa vaia ao sol, e havia aquela entoada entre gritos de “mais um para o Acre!”, quando passava o cortejo de um féretro. 

Mas se alguém levasse um tombo, ou meramente desse uma grande topada, ou desfilasse com roupa espalhafatosa de um lado da Praça do Ferreira, deflagraria uma grande vaia entre risadas, que do lado oposto do logradouro, e até pelas ruas próximas, era reproduzida, por quem nem assistira à cena, e, portanto, sequer conhecia a sua causa.  

Com certeza a vaia gutural cearense, rascante, tirada da garganta, foi herdada do conhecido costume indígena de vocalizar barulho em grupo, seja em sinal de alegria, seja de repúdio, seja de luto – e que nada tem a ver com os apupos europeus, que se restringem à pronúncia prolongada do fonema “U”. 

A atriz Valéria Vitoriano, no seu personagem Rosicleia, costuma emitir perfeitamente a característica e tradicional vaia cearense, que o Presidente Bolsonaro tenta e não conseguia imitar, produzindo um mero “iarrú!” à mexicana. 

A vaia cearense denotava euforia, mas tinha um componente perverso de severa crítica social, de ridicularia e de deboche impiedoso, mas, a par de muito sofrido pelas  rigorosas condições climáticas do Estado, e talvez até como reação de resistência a isso – o cearense é de fato um povo alegre. 

Meu velho pai, fazendeiro, lera na imprensa que viriam dois anos seguidos de seca no Estado. Então, chegando à sua fazenda, encontrou na estrada um agricultor, que caminhava carregando um feixe de varas na cabeça. Parou o carro e o abordou, para lhe transmitir o mau presságio: 

– Agapito, os cientistas estão dizendo que vamos ter dois anos de seca pela frente! 

Agapito colocou o molho de varas no chão placidamente, e soltou uma tonitruante risada africana. Meu velho, espantado, obtemperou: 

– Eu lhe dou uma notícia dessas e você ainda acha graça? 

– e a resposta que recebeu foi filosófica, estóica, resignada: 

– E o Senhor quer que eu chore? – E gargalhou de novo, enquanto recolocava a sua carga de varas na cabeça.




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