quinta-feira, 27 de julho de 2023

ARTIGO - Antinomias da Mudança Cultural (RMR)

 ANTINOMIAS DA
MUDANÇA CULTURAL
Rui Martinho Rodrigues* 

 

Dramaturgia e direção do teatro 

A mudança cultural em curso guarda relação com numerosos fatores. Intelectuais, artistas, professores, ativistas políticos e celebridades são importantes agentes da mudança histórica. Mobilidade geográfica, comunicações instantâneas popularizadas, urbanização e outros aspectos das transformações em curso facilitam a ação dos agentes citados e são impulsionados por eles. 

A mudança cultural tem sido promovida por ativistas que exercem uma mistura dos papéis de “diretor do teatro” da sociedade e de autor do script da cultura. Invocam a ciência como fundamento de legitimidade destas funções, como se a ciência fosse unívoca e os fenômenos sociais fossem do tipo nomológico. 

Registre-se que não existem leis, no sentido científico (conjunto de fatores que em condições definidas levam necessariamente a um resultado previsível) que regulamentem a dinâmica social. Caso existissem tais leis nós não teríamos escolhas, seriamos como máquinas que seguem uma programação. Friedrich Engels (1820 – 1895), no seu Iluminismo tardio, repete incontáveis vezes a expressão “leis da história”, no prefácio da edição de 1883 do Manifesto comunista. 

O atavismo ideológico 

O que inspirou Platão (428/427 a.C.– 348/347 a.C.), ao escrever A República, foi a ideia de um conhecimento superior como fundamento de validade de uma ordem política e social em que os filósofos governariam com poder absoluto sem consultar o povo. A alegoria da caverna, do autor citado, sugere que o homem comum é como os prisioneiros da caverna, que imaginam como seja o mundo que desconhecem. Mais tarde, porém, ele escreveu outra obra, As leis, em que se retrata do que havia dito em A República. 

Mas os divulgadores de ideias ocultam a autocrítica de Platão sob grossa camada de silêncio. Por isso ela é pouco conhecida. Talvez por não oferecer nenhuma fórmula apta a garantir a felicidade  em uma nova sociedade sob o comando dos intelectuais. Os filósofos seriam como o único dos prisioneiros da caverna que escapou, conhece a realidade e não é compreendido pelos que permaneceram presos na falsa “consciência” e por desconhecer a realidade. Só imaginam o significado de sombras. 

Karl Popper (1902 – 1994), na obra A sociedade aberta e os seus inimigos, coloca o pensador ateniense como um dos inimigos da liberdade, aparentemente referindo a obra mais divulgada. Curiosamente a ideia de “consciência verdadeira” é apregoada até pelos cultores do relativismo cognitivo e axiológico, com a ajuda da dialética, que Lucio Colletti (1924 – 2001) nomeava como senhora de costumes cognoscitivos fáceis. 

A citada obra de Platão é havida como uma utopia, no sentido de uma sociedade imaginária, mas perfeita. Embora designe um não-lugar, é apresentada pelos “reis filósofos” como realizável se lhes forem dados poderes absolutos. Isso parece com o Iluminismo e com a Revolução Francesa? Ou com todas as revoluções? 

A vontade de potência 

Os intelectuais classificam A República um modelo perfeito porque se imaginam herdeiros dos reis filósofos. A experiência histórica, porém, não lhes tem dado poder na construção da nova ordem. O regime sonhado por Platão era totalitário, exercido em nome do bem comum, alegação repetida pelos jacobinos, justificando o “reinado do terror” e a “fraternidade” da guilhotina. 

Grandes torpezas foram feitas em nome do bem. Todas as revoluções se inspiram na obra de Platão e na Revolução Francesa. É mais adequado, para os que se presumem herdeiros do poder nas revoluções, classificá-la como utopia do que como distopia. Friedrich Nietzsche (1844 – 1900) viu vontade de potência sob a pele dos abnegados missionários da construção demiúrgica de uma nova sociedade e de um novo homem. É um desejo que embriaga, gera dependência psicológica. Raymond Aron (1905 – 1983) o descreveu na obra O ópio dos intelectuais. 

Antinomias da engenharia social e antropológica 

O bem-estar é a meta principal e o arrimo da legitimidade do projeto político demiúrgico. No fundo é um projeto de superação do mal-estar na sociedade de que falava Sigmund Freud (1856 – 1939) já no título de uma de suas obras. Acomodar pulsões de vida e de morte, do inconsciente, em um modelo supostamente racional e perfeito é um verdadeiro nó górdio. 

É, portanto, um problema a ser resolvido pela espada, como o fez Alexandre da Macedônia. Não se trata de coincidência que a engenharia social e antropológica use e abuse da “violência do bem”. A Antropologia Filosófica dos “reis filósofos” nos considerada inteiramente guiados por uma suposta razão universal na aplicabilidade a todas as demandas humanas. O seu arrazoado é tido como irresistível em face das pessoas de boa fé. Só verdadeiros personagens bestiais não a compreendem ou compreendendo resistem e devem ser extirpados. 

Falta aos demiurgos uma razão unívoca, apta para solucionar todos os conflitos e insatisfações sociais. Falta aos que se dizem dirigentes, nos movimentos políticos do ambicioso projeto, a virtude da incorruptibilidade, que na posse dos amplos poderes necessários para superar a resistência “do mal”, tende a corromper, posto que o poder corrompe e o poder absoluto corrompe de modo absoluto, como disse o Lord John Dalberg-Acton (1834 – 1902). 

Não surpreende que as revoluções tão igualitárias e virtuosas se curvem a lei de ferro da oligarquia, do sociólogo alemão Robert Michels (1876 – 1936). Famílias da elite revolucionária ocupam o poder. O nepotismo sobrevive no ambiente das sociedades dirigidas pelos reis filósofos dedicados a corrigir os erros das velhas sociedades. 

A liberdade de ser versus liberdade de agir 

A sociedade dos reis filósofos enfatiza a igualdade, dizem os seus corifeus. Não se trata, todavia, da liberdade de agir, por eles nomeada como liberdade negativa, porque se limita a negar a terceiros o direito de obstacular a ação de atos lícitos. Admitida a liberdade de ação, seja dos agentes econômicos ou dos sujeitos da ação política, a desigualdade seria reintroduzida como meritocracia ou por meio de habilidades nem sempre virtuosas que satisfazem demandas legítimas e permitem a acumulação desigual. A liberdade de agir tem que ser limitada para que o rendimento de jogador de futebol, artista, atleta, técnico hábil ou de um empreendedor competente não introduza a desigualdade. 

A liberdade invocada pela “vanguarda” da história é a liberdade de ser, que ela descreve como condição de realização do potencial e dos sonhos de cada um. Os pressupostos de tal liberdade são que: 

(i) todos saibam o que querem ser e que tal vontade seja minimamente estável; 

(ii) todos tenha potencial para ser o querem independentemente da realidade material. 

(iii) Liberdade de ser pressupõe, ainda, a compatibilidade das vontades com o interesse social para que todos fossem igualmente remunerados, sem nenhuma relação com o que venham a se tornar conforme a mencionada liberdade de ser, sem importar com as demandas sociais que possam atender ou deixar de atender. 

(iv) Pressupõe, ainda, que a liberdade de ser pode se realizar sem a liberdade de agir, que é própria das concepções liberais. Indubitavelmente pressupõe demais. 

Os profetas das utopias não deixam claro que estão falando da igualdade na linha de chegada ou de resultados materiais, talvez porque se trate de um tipo de igualdade que nunca foi realizada. Historicamente a igualdade que mais se aproximou da realização foi a igualdade na linha de partida, como oportunidade.

Mas esta não é isonômica quanto aos resultados, acaba por ser apenas proporcional ao desempenho diferenciado pelos mais diversos fatores, conforme defendida por Aristóteles (384 a.C.– 322 a.C.). Trata-se de igualdade jurídica, política e valorativa. Não é econômica, não afasta as diferenças sociais. Mas os seus prosélitos não percebem isso, ou preferem não perceber.


A democracia do esclarecidos 

Democracia versus “consciência verdadeira” é outra antinomia da promessa messiânica dos reis filósofos. Permanece oculto, na ideia de “verdadeira consciência” ou “consciência esclarecida”, a mudança do conceito de democracia, deixando de ser governo da maioria para ser governo dos “esclarecidos”. O emprego do verbo “conscientizar” oculta a ideia de proselitismo e até de catequese. Indiferencia o conhecimento pertinente aos juízos de realidade ou de fato do conhecimento de outra categoria, concernente aos juízos de valor. O verbo conscientizar invoca a ideia de “consciência verdadeira”, inconciliável com o relativismo cognitivo e axiológico, ainda sob a camuflagem do perspectivismo. A “vanguarda esclarecida” se vale dos dois argumentos, afinal a dialética permite tudo. 

A hierarquia de conhecimento só se afirma na primeira categoria. Juízo de valor iguala eruditos e apedeutas. Os muito estudados podem até ser confundidos com as falácias de autores de grande prestígio. As virtudes morais se relacionam com os juízos valorativos, não com os juízes de realidade. Estes se inserem no campo da técnica. Decisões políticas não são técnicas, mas valorativas. 

O relativismo cognitivo e axiológico de um certo tipo de engenheiros sociais e antropológicos, da chamada dialética negativa, próxima do niilismo, não apresenta projeto de construção da nova sociedade. É apenas um projeto de destruição da velha sociedade, que tem amparo em conquistas históricas, muitas das quais valiosas, a despeito das tragédias encontradas no seu caminho. Um autor muito prestigiado tentou contornar a obscuridade das formas finais de sua construção dizendo, mais ou menos as seguintes palavras: eu não sou bruxo para retirar do caldeirão da história as formas do futuro. 

Discurso sedutor, pródigo em críticas nem sempre procedentes e em promessas que sempre precisam de mais tempo e mais poder para que sejam realizadas. Mas falto em soluções. Diz que todos merecem viver melhor, os nossos fracassos são culpa do “sistema” e com meia dúzia de chavões produz “eruditos sem estudo”. Permite aos mesquinhos pregar a solidariedade sem ônus para si, transferindo a conta para o Estado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário