domingo, 20 de outubro de 2013

CONTO CRONOLÓGICO

MICROCOSMO
Por Aluisio Gurgel do Amaral Jr*

04h21
O silêncio não entedia tanto quanto a ausência, nem a ânsia pela palavra certeira é maior do que a dúvida, e por serem decorrências da mesma dor, confluem num ponto: na minha loucura por ti.

04h22
Confirmando a posição das coisas: camisas pelo lado esquerdo, calças pelo direito, meias enroladas em bolas. Tudo pronto, nada falta além de ti. Mas quem disse que cabes na mala?

04h23
Me levo ao banheiro, me lavo lento, me barbeio e me visto. Faço tudo isso porque não há quem faça o que sei fazer de melhor: cuidar de mim.

04h24
Yeltsin acaba de renunciar, anda me copiando rasgado, nas últimas horas – pelo menos sabemos quando não há mais espaço para a convivência leal.

04h25
Ainda te vejo dormindo mais uma vez e prossigo arranjando-me para ir, pois não é assim que queres, sem adeus, nem nada?

04h25
N'outros tempos, ameaçasse partir e caias ao chão, e rasgavas a blusa, e expunhas os seios, e gritavas tantos que a vizinhança acorria. Era assim que me fazias ficar.

04h26
Esta noite assustei–me: não houve gritos, sequer me olhaste de frente e, se bem recordo, não ouvi uma palavra tua, bastaram os gestos.

04h27
Outra vez defronte ao espelho: lá estou eu do outro lado – sorrio ou choro? – quase esquecendo a escova de dentes e a banda de mim que não quer ir.

04h28
Do guarda roupas a roupa do corpo e a indecisão: levar o poster do Che ou sobre ele escrever uma declaração de batom?

04h29
Djavan estava certo: o amor é mesmo um grande laço, um passo para uma armadilha. Pior: confesso que tentei seguir-lhe o rastro e me perdi no caminho.

04h30
Da varanda, as luzes da cidade sempre cintilam em uma só e mesma direção: a daquele avião que parte.

04h31
Quadro, quadro, quadro, console, solitário, jarro de flores, espelho... E vou esfumaçando a paisagem que deixo em pouco.

04h31
Por que partir de madrugada? Por que não? Acaso há hora certa para partir? O tempo é referencial de despedida?

04h32
Ainda a fumaça dançando pela sala e mais um trago... E de novo vens lá de dentro, sem licença, trazendo cenas do tempo em que fazíamos tudo juntos.

04h33
Vens de quando andávamos à toa em meio aos outros, reparando nas pessoas aquilo que têm de mais belo: a espontaneidade.

04h34
Vens de quando Lena Hau, o novo nome da luz! – foi assim que a chamamos – começou a transformar nossos sonhos em realidade.

04h35
Vens de quando finalmente descobrimos que o João Gilberto não sabe dar língua direito, mas consegue ser bastante eficiente.

04h36
Vens de tantos tempos que chego a cogitar o tempo como um referencial de despedida, talvez por isto partir de madrugada.

04h37
Mas desde a primeira vez o tempo nunca regulou nossas transas. Éramos muito barulhentos e atemporais, e isto causava espécie à sua afeição pelo silêncio.

04h38
Torno ao quarto e eis a tua imagem meio nua, os cabelos desgrenhados, um seio à mostra e a calcinha entrando pelos fundos... Nem Modigliani se aquietaria.

04h39
Uma massagem na fronte, não levar Che, nem deixar declaração, apenas a preocupação do itinerário. Para onde ir?

04h39
Ao me verem, os outros certamente dirão: “tem gente que não tem nada para fazer em casa e vai fazer nada na casa dos outros, como se os outros não tivessem nada para fazer também!”

04h40
Por ora, retorces o corpo esbelto sobre a cama. Ei, psiu... Se acordasses agora talvez te perdoasse a falta de tato.

04h41
E perdoaria de coração se soubesse quem sou e o que significo para nós, mas ando tão sem saber que nem me imagino agora.

04h42
Então imagina-me assim: sou três eus que não se suportam, o primeiro vive a querer dominar-me, o segundo a querer sujeitar-se e o terceiro, esse nunca sei por onde anda.

04h43
Pois se aos outros muitas vezes é-se capaz de tudo, a si nem sempre se é capaz de muito...

04h44
E era tão bom quando cantavas: “Baby/ don't let me down tomorrow/ que eu não sei viver nem um minuto sem você/ às vezes/ quando bato o pé/ e fecho o tempo/ juro que não sei dizer porque/ só sei/ que lhe amo, baby/ e que nada mais importa a mim/ não vá embora, baby/ se você for não vai sobrar um tanto assim/ de mim...”

04h46
Agora, nec mihi mors bis patienda foret: nem eu teria de morrer duas vezes, nem eu teria de sofrer duas vezes a mesma morte.

04h47
Logo amanhecerá e ainda não tive coragem de ir outra vez. Aqui, bem aqui no coração há uma química acontecendo que pelejo para entender.

04h48
Conduzo a mala até a sala e finjo que vou fumar, finjo que alguém baterá à porta e que um dos meus eus – talvez aquele que não me suporta – irá ao encontro do outro que nem sei por onde anda.

04h49
Farei bom negócio se ficar apenas com o que realmente gosta de mim... Correção: faríamos bom negócio, se assim fosse.

04h50
A água ferve e os segundos correm no counter do micro-ondas até o marco zero. Um apito, abro a porta, despejo o pó na xícara, o adoçante...

04h50
Um ruído flecha o resto de silêncio que me sobra: é uma tampa de privada que bate no banheiro do ex-quarto.

04h51
Sei que acordaste. Te conheço tão bem que sou capaz de adivinhar o som dos teus pensamentos, a forma dos teus sonhos, a cor dos teus sentimentos, tudo. E sabes disto muito bem.

04h51
Sorvo o café em um gole rápido – não quero mais incomodar – e a quentura arquiteta uma lágrima que me corre pela face. Decidi, vou mesmo: me viro, rumo em direção à sala...

04h52
...e esbarro contigo na porta da cozinha. Agora tenho certeza: em tanto tempo, esta é a primeira vez que realmente nos olhamos.

04h52
E olhar em ti assim não é mais a mesma coisa – nunca, nunca mais, pois é a primeira vez que me vejo claramente, nu, sem subterfúgios, nem casca alguma, entendes?

04h53
É claro que sim, caso contrário não me envolverias em teus braços, nem tocarias levemente a minha boca quando quis falar, nem dirias: “fica, desta vez foi sem querer!”

*Aluísio Gurgel do Amaral Jr
 Titular da Cadeira de nº 14 da ACLJ

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