MICROCOSMO
Por Aluisio Gurgel do Amaral Jr*
04h21
O silêncio não entedia tanto quanto
a ausência, nem a ânsia pela palavra certeira é maior do que a dúvida, e por
serem decorrências da mesma dor, confluem num ponto: na minha loucura por ti.
04h22
Confirmando a posição das coisas:
camisas pelo lado esquerdo, calças pelo direito, meias enroladas em bolas. Tudo
pronto, nada falta além de ti. Mas quem disse que cabes na mala?
04h23
Me levo ao banheiro, me lavo lento,
me barbeio e me visto. Faço tudo isso porque não há quem faça o que sei fazer
de melhor: cuidar de mim.
04h24
Yeltsin acaba de renunciar, anda me
copiando rasgado, nas últimas horas – pelo menos sabemos quando não há mais
espaço para a convivência leal.
04h25
Ainda te vejo dormindo mais uma vez
e prossigo arranjando-me para ir, pois não é assim que queres, sem adeus, nem
nada?
04h25
N'outros tempos, ameaçasse partir e
caias ao chão, e rasgavas a blusa, e expunhas os seios, e gritavas tantos que a
vizinhança acorria. Era assim que me fazias ficar.
04h26
Esta noite assustei–me: não houve
gritos, sequer me olhaste de frente e, se bem recordo, não ouvi uma palavra
tua, bastaram os gestos.
04h27
Outra vez defronte ao espelho: lá
estou eu do outro lado – sorrio ou choro? – quase esquecendo a escova de dentes
e a banda de mim que não quer ir.
04h28
Do guarda roupas a roupa do corpo e
a indecisão: levar o poster do Che ou
sobre ele escrever uma declaração de batom?
04h29
Djavan estava certo: o amor é mesmo
um grande laço, um passo para uma armadilha. Pior: confesso que tentei
seguir-lhe o rastro e me perdi no caminho.
04h30
Da varanda, as luzes da cidade
sempre cintilam em uma só e mesma direção: a daquele avião que parte.
04h31
Quadro, quadro, quadro, console,
solitário, jarro de flores, espelho... E vou esfumaçando a paisagem que deixo
em pouco.
04h31
Por que partir de madrugada? Por que
não? Acaso há hora certa para partir? O tempo é referencial de despedida?
04h32
Ainda a fumaça dançando pela sala e
mais um trago... E de novo vens lá de dentro, sem licença, trazendo cenas do
tempo em que fazíamos tudo juntos.
04h33
Vens de quando andávamos à toa em
meio aos outros, reparando nas pessoas aquilo que têm de mais belo: a
espontaneidade.
04h34
Vens de quando Lena Hau, o novo nome
da luz! – foi assim que a chamamos – começou a transformar nossos sonhos em
realidade.
04h35
Vens de quando finalmente
descobrimos que o João Gilberto não sabe dar língua direito, mas consegue ser
bastante eficiente.
04h36
Vens de tantos tempos que chego a
cogitar o tempo como um referencial de despedida, talvez por isto partir de
madrugada.
04h37
Mas desde a primeira vez o tempo
nunca regulou nossas transas. Éramos muito barulhentos e atemporais, e isto
causava espécie à sua afeição pelo silêncio.
04h38
Torno ao quarto e eis a tua imagem
meio nua, os cabelos desgrenhados, um seio à mostra e a calcinha entrando pelos
fundos... Nem Modigliani se aquietaria.
04h39
Uma massagem na fronte, não levar
Che, nem deixar declaração, apenas a preocupação do itinerário. Para onde ir?
04h39
Ao me verem, os outros certamente
dirão: “tem gente que não tem nada para fazer em casa e vai fazer nada na casa
dos outros, como se os outros não tivessem nada para fazer também!”
04h40
Por ora, retorces o corpo esbelto
sobre a cama. Ei, psiu... Se acordasses agora talvez te perdoasse a falta de
tato.
04h41
E perdoaria de coração se soubesse
quem sou e o que significo para nós, mas ando tão sem saber que nem me imagino
agora.
04h42
Então imagina-me assim: sou três eus
que não se suportam, o primeiro vive a querer dominar-me, o segundo a querer
sujeitar-se e o terceiro, esse nunca sei por onde anda.
04h43
Pois se aos outros muitas vezes é-se
capaz de tudo, a si nem sempre se é capaz de muito...
04h44
E era tão bom quando cantavas: “Baby/
don't let me down tomorrow/ que eu não sei viver nem um minuto sem você/ às
vezes/ quando bato o pé/ e fecho o tempo/ juro que não sei dizer porque/ só
sei/ que lhe amo, baby/ e que nada mais importa a mim/ não vá embora, baby/
se você for não vai sobrar um tanto assim/ de mim...”
04h46
Agora, nec mihi mors bis patienda
foret: nem eu teria de morrer duas vezes, nem eu teria de sofrer duas vezes
a mesma morte.
04h47
Logo amanhecerá e ainda não tive
coragem de ir outra vez. Aqui, bem aqui no coração há uma química acontecendo
que pelejo para entender.
04h48
Conduzo a mala até a sala e finjo
que vou fumar, finjo que alguém baterá à porta e que um dos meus eus – talvez
aquele que não me suporta – irá ao encontro do outro que nem sei por onde anda.
04h49
Farei bom negócio se ficar apenas
com o que realmente gosta de mim... Correção: faríamos bom negócio, se assim
fosse.
04h50
A água ferve e os segundos correm no
counter do micro-ondas até o marco zero. Um apito, abro a porta, despejo
o pó na xícara, o adoçante...
04h50
Um ruído flecha o resto de silêncio
que me sobra: é uma tampa de privada que bate no banheiro do ex-quarto.
04h51
Sei que acordaste. Te conheço tão
bem que sou capaz de adivinhar o som dos teus pensamentos, a forma dos teus
sonhos, a cor dos teus sentimentos, tudo. E sabes disto muito bem.
04h51
Sorvo o café em um gole rápido – não
quero mais incomodar – e a quentura arquiteta uma lágrima que me corre pela
face. Decidi, vou mesmo: me viro, rumo em direção à sala...
04h52
...e esbarro contigo na porta da
cozinha. Agora tenho certeza: em tanto tempo, esta é a primeira vez que
realmente nos olhamos.
04h52
E olhar em ti assim não é mais a
mesma coisa – nunca, nunca mais, pois é a primeira vez que me vejo claramente, nu,
sem subterfúgios, nem casca alguma, entendes?
04h53
É claro que sim, caso contrário não
me envolverias em teus braços, nem tocarias levemente a minha boca quando quis
falar, nem dirias: “fica, desta vez foi sem querer!”
*Aluísio Gurgel do Amaral Jr
Titular da Cadeira de nº 14 da ACLJ
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