quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

CRÔNICA - Retiro Filosófico (RV)

RETIRO FILOSÓFICO
Reginaldo Vasconcelos*

 

Estamos na fazenda, após dois anos de recolhimento sanitário, em face da pandemia de Covid. 

Vimos para passar o carnaval, resgatando uma longa tradição familiar de fugir da folia momina na cidade, rumo ao campo. 

Ao adentrarmos a casa sede da fazenda uma gata muito meiga, que apareceu no nosso período de ausência entre os pets residentes, nos recebeu “com confetes dourados” – como se dizia antigamente. 

Ela roçava o corpo em nossas pernas ronronando, e deitava manhosa para receber nossos afagos. 

Todos nós ficamos encantados com um animalzinho tão afável com estranhos, e aparentemente inofensivo, que conquistou a todos nós. 

No dia seguinte, quando tomávamos o café da manhã na edícula da fazenda, desfrutando o ambiente bucólico, aquele meigo felino capturou, matou e em seguida devorou, diante dos nossos olhos, um mavioso passarinho canoro que nos brindara com o seu canto, e em seguida pousara descuidoso no gramado. 

Então me lembrei de uma crônica na qual Rubem Braga conta que ao chegar numa praia virgem do litoral catarinense em veraneio ficou maravilhado com a simplicidade, a pureza, a doçura dos pescadores locais, tão lhanos e prestimosos, exibindo o que deve ser a alma humana original, ainda isenta dos sentimentos sórdidos que medram na sociedade evoluída, e das maldades que a civilização implanta nela. 

No dia seguinte – o cronista revela estupefato – deu na praia um pequeno pinguim que se desorientara da sua rota migratória, e foi imediatamente trucidado a cacete por aqueles mesmos pescadores cordiais que lhe haviam parecido o suprassumo da pureza e a quintessência da bondade. 

Isso faz perceber que a vida é essencialmente cruel, e que é a inteligência e o discernimento das coisas que faz o ser vivo sair do primitivo rés do chão para contemplar as realidades superiores, e se conduzir sensatamente. 

Os nossos bichos de estimação, por exemplo, trazidos conosco, habituados com rações industriais, nem contemplam a hipótese de se alimentarem atacando outros viventes. 

Na fazenda, a pouco mais de cem quilômetros da Capital, soubemos que estamos entre duas facções criminosas que, ironicamente, nos garantem segurança, porque, conquanto compitam pelo comércio de drogas e de vez em quando se matem entre si, seus membros preservam o público local, coibindo o crime comum e o varejo delitivo, que podem atrair a polícia e atrapalhar o seu negócio. 

Ao cabo desse retiro espiritual e filosófico da família resta uma reflexão profunda sobre onde situar a virtude, nessa quadra da vida nacional tão conturbada, em que tem valido atacar passarinhos Mário-quintanianos,** e espancar pinguins graciosos, inocentes e indefesos, na encarniçada luta pelo poder absoluto e pela desvirtuação da sociedade.

**Poeminho do Contra
 
Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!

Mário Quintana


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