sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

CRÔNICA - Al Di LÀ (RV)

 AL DI LÀ
Reginaldo Vasconcelos* 

 

Italiano sem sotaque, já criado no Brasil, nariz carcamano, Tio Camillo era a síntese genética das glórias de Roma, estátua dourada que tomasse alento, ânimo, vida. 

Era, portanto, o nosso orgulho de meninos magricelas o tio hercúleo e façanhudo, que, aliás, não sonegava à nossa imaginação infantil histórias e posturas condizentes com a sua aparência épica. 

Faixa preta em jiu-jitsu, propunha-se a estraçalhar em segundos qualquer um que ameaçasse de qualquer forma a nossa soberania pueril, e não se negava a exibir o muque avantajado a plateias mirins que porventura reuníssemos. 

O que não sabíamos é que por trás desse folclore que ele alimentava, sua história era “mais bonita que a de Robson Crusoé”, como concluiu sobre si mesmo o poeta Drummond, “comprida história que não acaba mais”. 

O caso do desmemoriado de Collegno foi o mais rumoroso erro judiciário cometido na Itália, por influência nefasta e vergonhosa da Igreja Católica. O Professor Giulio Canella, homem culto e abastado, religioso e benemérito, título de Comendador concedido pelo Papa, desapareceu na Primeira Grande Guerra. 

Sua mulher enviuvou dignamente, até que, tempos depois, o professor foi encontrado amnético, vagando pelas ruas da cidade italiana de Collegno. 

Reassumiu a família, recobrou a memória, mas a Cúria e a Justiça italianas resolveram contestar sua identidade. Estribados no mistério de seu longo sumiço, defendendo bens e direitos que o Comendador legara ao Clero, acusaram-no de impostor e sua mulher de leviana. 

Em consequência o casal Canella abandonou a Itália para sempre, adotando o Brasil como nova pátria, terminando aqui de criar os filhos e aqui falecendo na velhice. 

Tio Camillo, dos mais novos da prole, se radicou por algum tempo em Fortaleza, onde casou e fez família, estabelecendo uma amizade fraterna com meu pai. Além de tio adotado, foi também o meu primeiro sogro, já que a sua primogênita regulava comigo, e que celebraram para nós um noivado precoce. 

Moça feita, bela por sinal, Carla usava no cordão de ouro a catita aliancinha que recebera ainda de fraldas. A minha, há muito se perdeu na tranqueira do mundo e na tralha da memória, muito antes que eu pudesse ter jus aos amavios que ela talvez me conferisse. 

Depois, veterinário hábil, catedrático e cientista, Tio Camillo mudou-se para o Sul, onde foi assistir grandes fazendas e militar no magistério superior. Aparecia esporadicamente em Fortaleza para tomar garrafas de vermute com meu pai, ao som de românticas canções italianas, tão em voga na década de 60 – “Al Di Là” a mais marcante para mim. 

Um dia, em visita à sua mãe no Rio de Janeiro, Tio Camillo encontrou no elevador a jornalista Ildelgard Angel, que não o conhecia, e que, falando em italiano, prometia a um grupo de homens “convencer a velha a aceitar a proposta”. 

Perceberam encabulados se dirigirem ao mesmo apartamento, residência de Dona Giulia, homônima do marido falecido. Eram produtores do cinema italiano que pretendiam adquirir os direitos para contar em um filme de cinema a história da família. 

As negociações foram longas e difíceis, já que a versão oficial denegria os Canella, e a versão real desmoralizava a Justiça italiana. Enfim, após concordarem por um roteiro franco, sem desfecho conclusivo, deixando ao público o julgamento dos fatos, o filme foi realizado, e há alguns anos foi exibido no Brasil.

Nota: Do livro "Traços da Memória – Laços da Província" (1992) 

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