terça-feira, 31 de dezembro de 2024

CRÔNICA - Saudade e Esperança (RV)

SAUDADE
E
ESPERANÇA

Reginaldo Vasconcelos*

Último dia do ano, ensejo de esperança e de saudade. As perspectivas pessoais ainda são ótimas, mas os doze vagões temporais que partem amanhã não transportam nada alvissareiro para a Nação e para o povo a que pertenço, e as agruras que carregam não são surpresa para mim. 

Desde o começo da atual conjuntura eu já tinha um prognóstico funesto sobre os destinos da locomotiva nacional. Entretanto, se o País se afigura uma pocilga moral, de violência, mentira, iniquidade e incompetência, da lama que borbulha nos gabinetes da República somente o seu olor acre e nauseabundo me atinge, até agora. 

Mas o incenso da saudade trescala intensamente neste dia, com o perfume que harmoniza a fragrância dos prazeres e dos afetos do passado, ou da ausência fortuita de alguns destes, com o almíscar do que passou e não retorna – mas continua presente em nós, entre as memórias mais gentis e os mais enlevados sentimentos. 

Quereria eu ter ao meu lado nesta noite todos os amigos queridos que a vida me emprestou, visitar todos os salões dos antigos carnavais, cavalgar pelas veredas ensolaradas da infância, mergulhar de novo na Piscininha da Praia de Iracema, vagar pela cidade no meu carro branco do passado.

Com o outro da mesma cor, subir a serra, perfurar a paisagem em demanda do sertão. Ah! Saudade dos meus vários e sucessivos carros brancos! Que saudade das tantas moças que me cortejaram e que, consequentemente, cortejei. Saudade imensa dos meus cães, dos queridos operários com os quais lidei. 

Saudade da minha pequena bicicleta, a única que tive, com a qual eu disparava pelas calçadas da minha rua, ainda tão pequeno e primário quanto ela. Saudoso também dos fícus benjamins que exalavam um perfume florestal sobre a avenida em que eu morava, como também das oiticicas nativas gigantes que sombreavam o pátio da velha casa da fazenda.

Vem-me algumas lembranças olfativas do tempo de escotismo – o odor da lona das barracas de acampamentos e das cordas de sisal, e os cheiros da prática de lutas  as luvas de crinas de cavalo, os suados quimonos de algodão trançado, a palha dos tatames japoneses.    

Uma grande nostalgia dos meus pais, e dos tios, tantos tios, tantas tias, apenas delas uma ou outra ainda viva. E das modinhas antigas, como das canções americanas e os boleros em castelhano, que giravam na radiola da sala, ou as músicas que surgiam no rádio da cozinha, novinhas em folha, vindas do Rio de Janeiro. 

Melancólica lembrança das marchas de carnaval, das composições que apareciam a cada ano, a cada período momino, com suas letras burlescas e irreverentes, cheirando à maisena, ao pó de café e ao colorau que sucediam aos confetes e serpentinas, durante o corso, o entrudo líquido, o saudável, animado e amistoso “mela-mela”. 

Enfim, recordações de um tempo em que a humanidade era mais pura e a vida era mais doce. Não. Não se trata de cultuar memória eufórica. Sim. Havia dor e sofrimento também. Mas as mulheres eram mais mulheres, e os homens mais homens. 

As crianças eram tratadas com respeito e rigor, para que reproduzissem ou superassem os seus próprios pais na vida adulta. Havia disciplina, devoção, honra, compromisso. Ah! como diria Guilherme Neto, tendo vivido tantas maravilhas e tanto tempo desfrutado – hoje tenho saudade difusa, principalmente, saudade de mim mesmo.   

Em 31.12.2024  

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