CRÔNICA
DE NATAL
Reginaldo
Vasconcelos*
Mesas têm quatro pernas, como os quadrúpedes em geral. Mas a longa távola da Tenda Árabe só tem três, as colunatas centrais, seus aprumos líticos, lembrando os seres imaginários de Jorge Luis Borges.
É naquela mesa que se pratica a “ceia larga” dos amigos e confrades que frequentam a minha casa, célebre peça de mobília comentada no último livro de crônicas do saudoso Ibiapina, que, vindo direto de Brasília, a frequentava.
A cachaça com caju do Barros Alves, o vinho tinto do Paulo Ximenes, a cuba-libre do Adriano Jorge, a caipirinha do Sávio Queiroz Costa, o uísque do Luciano Maia, a abstinência do Rui Martinho Rodrigues – ecletismo de preferências e de ideias.
O recinto foi inspirado na península arábica pelo querido amigo Artur da Távola, região de onde lhe vieram os ancestrais – cujas areias a Sagrada Família palmilhou, como narram as Escrituras, fugindo da sanha assassina de Herodes contra hebreus.
Mesmo que andasse, a mesa não poderia ter saído da sala para a qual foi concebida e desenhada, descido da Torre Quixadá – depois de aposentado o escritório de exportação do Tio Osíris – e caminhado até o Largo da Poesia, onde se situa a Tenda Árabe.
Não. A mesa veio (e talvez a contragosto, que toda mudança drástica incomoda quem esteja longamente acomodado), trazida pelo braço operário com cuidado extremo, que o raro mármore rosa da Bahia de que é constituída é um tanto delicado – a mais nobre coloração da pedra em Portugal, e a preferida pelos árabes, segundo o nosso confrade especialista na matéria, o geólogo Carlos Rubens.
Foi o dito Paulo Ximenes que a batizou de mesa “uvular”, em razão do seu formato. E, além do Paulo, em torno dela se sentaram ao longo do tempo ilustres personalidades que já se foram do convívio nosso, a duras penas para nós, que os pranteamos.
Mas ela continua a receber os que glorificamos a boa conversa entre copos e talheres tilintantes, nas noites das terças, ou nas tardes de sábado – certamente conosco em espíritos todos os habitués para quem a “caetana” antecipou-se – no dizer de Ariano Suassuna.
Mas na antevéspera do natal, há alguns anos, a mesa uvular trupicou sobre o piso novo que instaláramos e desmoronou dramaticamente diante de nós em seu terço sinuoso, que se partiu em mil pedaços.
Pode-se supor que o tenha feito inconformada com a insolência de a termos manuseado para a obra, atentando contra a sua insigne majestade. Ou, por outra, pode ser que, enciumada com a bela cerâmica agora assentada sob ela, tenha tentado suicídio vingativo – aquele que alguns praticam para punir, com a sua perda, quem os ame e eventualmente os incomode.
Meu Deus! Seria amanhã a grande reunião natalina, e agora se demitia das funções a grande bancada daquele templo dedicado ao exercício do intelecto, ao amor cósmico e ao deleite social – e também ao aconchego geral nas grandes datas.
Siderado com o contratempo, corri a cidade e seus subúrbios, mergulhado nas indicações do celular, até encontrar um santo homônimo do “pobrezinho de Assis”, que se prontificou a vir resolver em nosso domicílio o tal problema.
Esse Francisco, restaurador aplicado, empenhou-se conosco e recompôs a peça imensa com tamanha presteza e esmero, entrando pela noite, que assim conquistou a nossa gratidão, levando para a sua casa – além dos merecidos honorários – insumos para a ceia com a família.
Ufa!
A mesa foi salva, a tempo e sem sequelas, e aquele natal foi, como sempre,
cheio de luz e encantamento – enquanto Maria de Fátima, em sua nívea porcelana,
do seu nicho iluminado, no tronco de cedro que enfeita e abençoa o ambiente,
parecia sorrir com ar bondoso ante o alívio que se seguiu ao grande susto
natalino.
Que crônicas maravilhosas. Não é à-toa que o escritor RV é o capítulo do meu novo livro "Reservas da minha Étagère", intitulado "REGINALDO VASCONCELOS - Referência de Escritor na obra Eutimia - o Segredo da Felicidade Essencial". Palmácia-CE: Arcádia Nova Palmaciana; Fortaleza: Academia Cearense de Literatura e Jornalismo, 2024.
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