segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

CRÔNICA - Ugarte (RV)

 UGARTE
Reginaldo Vasconcelos*

 

Eu nunca fora ao Ugarte, restaurante instalado pelo jornalista Lúcio Brasileiro na década de 80, na Praia do Cumbuco, em Caucaia, cidade da grande Fortaleza. 

Aquela casa de pasto foi fundada exclusivamente para receber os amigos seus, todos eles integrantes da alta sociedade, que ele chama seus “irmãos civis” – flanando entre estes a elite da imprensa. 

Lúcio Brasileiro nasceu Newton, e estreou o pseudônimo no jornal ainda menino, exatamente no ano em que nasci, há quase sete décadas. 

Cresci ouvindo falar dele e falar nele – falar mal dele pela candinha popular, enquanto ele a cada dia aparecia entre os mais lidos jornalistas da cidade, em cujas linhas todos ambicionavam desfilar. 

Em menino o vi passar atrás de um pomposo bigodão, ao volante do seu carro, enquanto os alunos do Colégio Castelo Branco, da calçada, o apupavam. 

Quando escrevi o meu primeiro livro, início dos anos 90, pensei em pedir que ele me concedesse um prefácio e o fui procurar nos estúdios da TV Jangadeiro, quando então ouvi que prefácio não faria ele, mas talvez só uma “orelha”. 

Abortei a ideia e declinei de obter dele o texto menor para uma das abas do meu livro, e praticamente nunca mais nos avistamos.




Até que fui instado pelo empresário Beto Studart a biografar o seu velho amigo jornalista que atingia as marcas de 85 anos de idade e de 69 de imprensa, tarefa editorial que consegui desempenhar a contento em dois meses tão-somente, edição de luxo de 400 páginas, a cujo apoteótico e memorável lançamento compareceu todo o grand mond da sociedade cearense.


 


E então me vi nesta semana convidado especial para o tradicional encontro anual de frequentadores do Ugarte – para mim uma experiência ímpar, o epílogo de uma história de tantos decênios que eu venho acompanhando como ao fluxo de um rio, o qual tive o privilégio de navegar no meu relato biográfico, e termino por ver chegar ao delta, desaguando no oceano da memória.


domingo, 1 de dezembro de 2024

POESIA - Pobre de Mim (RV) X Poema em Linha Reta (FP)

 POEMA EM LINHA RETA
Fernando Pessoa*
(Pelo heterônimo Álvaro de Campos)
 
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
 
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das
etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
 
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe  todos eles príncipes – na vida...

 
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
 
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
 
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
 
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.





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POBRE DE MIM
Reginaldo Vasconcelos*
(Contraponto)
 
Pobre de mim,
Que já surpreendo os traços avitos no meu rosto.
Como as minhas, a exata e querida mão do meu saudoso avô paterno, aquelas falangetas que o alcatrão do tabaco já tingira de ouro velho, na lembrança indelével que eu interno.
 
Feliz de mim,
Que tenho vivido com galhardia tantos anos,
Que não fugi dos desafios sinuosos que o mundo propôs,
Que tenho triunfado ufano das grandes tentações da improbidade, da sereia da ilicitude, dos mais sórdidos complôs.
 
Pobre de mim,
Que tenho perdido amigos a mancheias para a morte, e que não tenho solidariamente morrido, e que não busquei a fortuna financeira a qualquer preço e com afinco, tantas vezes me arriscando a vir a comer com os cães e a dormir com os gatos sobre o zinco.
 
Feliz de mim,
Que não tenho que fazer coro com o poema de Pessoa, e que me inscrevo entre os “príncipes” de que o poeta faz escárnio, porque não tenho devido sem pagar, nem me deixado trair, e que os socos recebidos tenho todos revidado, ao belo e ao feio, ao pobre e ao rico, ao califa ou ao grão-vizir.
 
Pobre de mim,
Que não tenho podido entender todos os homens que encontrei, 
Que não me foi dado socorrer todas as almas que bordejaram a minha sorte, amar todas as filhas de Zeus, produzir o poema perfeito, salvar a pátria amada dos iníquos filhos seus.
 
Pobre de mim.  



POESIA - Soneto Decassilábico Português, com Rimas Encadeadas (VM)

 A PINDAÍBA E O DIALE
Vianney Mesquita*

 

Para que serve o dinheiro? Quem o não tem não possui coragem; quem o tem guarda preocupações; aquele que o reteve por um tempo protege saudades. (FRIEDRICK von LOGAU, poeta polaco. Brochoci, 1604; Legnica, 1655).   


 

Em certo tempo, aquando eu alisara,
Escorregara em lisa economia,
 Na história lia o quanto analisara,
Verificara o quão ocorria.
 
Hoje, na via a ver como restara,
Não com a rara visão da prataria,
Eu ouvia as razões do que me azara
Tal azo, para mim, já não valia.
 
Em fantasia expressa nesta via,
Entendia: a pecúnia é o Encardido
E o sortido efeito passageiro.
 
Ora, ligeiro e agudo, todavia,
Se um dia alguém quiser o Escurecido,
Basta, escondido, quedar sem dinheiro!