A União
Paulo Ximenes*
O pôr-do-sol na Praia de Iracema, particularmente quando apreciado sobre a Ponte dos Ingleses, é mais precioso do que os das outras praias, conforme as explanações dos guias turísticos aos senhores visitantes. Mas essa beleza encerra uma introspeção que só alumia a vista de quem morou naquele lugar e ali deixou um pedaço da sua vida. O alaranjado nostálgico das nuvens cadentes e as ondas se despedaçando intermitentemente sobre velho quebra-mar – ao sabor das aragens, dos odores dos sargaços e do rebuliço nos cabelos das gurias –, é hoje, para os seus ex-moradores, um fascínio mumificado. O feitiço nos foi usurpado há décadas e só perdurou enquanto houve moradias habitadas nas imediações da Vila Morena.
Ah! A Vila Morena... Uma edificação mimosa (e testemunha da história) na qual o tempo se encarregou de instalar o famoso Restaurante Estoril, em cuja vizinhança se erguia também, até o final da década de sessenta, um sobrado tão raro e excêntrico quanto ela: o prédio construído para abrigar os engenheiros ingleses que vieram projetar e supervisionar a construção das duas pontes que serviriam para a atracação de navios.
Muitos anos depois, foi o referido sobrado adquirido por membros da minha família, onde se firmou um clube ou associação particular posteriormente batizada de “União da Família Aguiar Ximenes e Amigos Afins” com estatutos definidos, leis de convivência, reuniões formais, atas lavradas em cartório na forma da lei, etc. e tal, que nós, os filhos dos sócios, chamávamos simplesmente de “União”.
O certo é que, aos domingos (porque a praia ficava num ruge-ruge medonho) eles contratavam um vigia para tomar conta do portão. Uma vez, ao retornar de um mergulho na piscininha, todo molhado, arrepiado e salpicado de areia, eu tentei entrar no clube. Fui logo interpelado por um deles que me pôs a mão no ombro:
─ Para aonde vai, menino? ─ Eu vou entrar aqui!
─ Qual é o nome do seu pai? ─ Salomão Aguiar Ximenes.
─ Pode entrar. A casa é sua!
Aquela foi uma iniciativa louvável e inusitada, pois não havia em Fortaleza ou em qualquer outra cidade do Ceará (quiçá do Nordeste) um único relato de um clube de domínio estritamente familiar. Localizava-se na graciosa Rua dos Tabajaras nº 470, no coração da Praia de Iracema, e literalmente se limitava ao norte com a sua majestade – o oceano atlântico. Mais especificamente com as mornas águas da piscininha, que às marés cheias engoliam o nosso campinho de futebol, chicoteavam o nosso baixo muro de pedras, e, não raro, ameaçavam os degraus da nossa pequena varanda.
Além do prédio antigo, dispunha o terreno de um galpão-bar, de um generoso espaço para recepções e de uma pequena quadra esportiva. No curso da minha memória reluzem traços de uma residência senhorial com muralhas, fosso e barbacã. Largos degraus de escadas, terraços frescos, porão sobre a cozinha, quartos e banheiros com detalhes primorosos. A sonora escadaria em madeira de lei delatava quem nela pisava com sons fantasmagóricos e era ladeada por grandes vitrais coloridos, à moda das igrejas. Seus degraus interligavam o solene salão de visitas aos quartos de dormir.
As telhas vieram da França, os banheiros eram ataviados com cerâmicas portuguesas e as torneiras se cunhavam de arte. Aquilo se harmonizava com os balaústres da sacada que sustentavam os corrimãos de peitorais. Eu, os meus pais, os meus irmãos, um casal de tios (a Tia Adalgisa e o Tio Cipriano) e mais alguns primos morávamos temporariamente no prédio da União, onde as janelas dos quartos do pavimento superior davam para o mar e me traziam o cheiro dele. Estava bem ali aquele doce mar selvagem mar rugindo a uns poucos metros da minha rede. À noite, suas inquietas ondas, quando não me amedrontavam, solfejavam cantigas de dormir.
Não vai também me escapar à memória o fato de que, ao final de quase todas das tardes, convergiam para a nossa quadra de esportes as meninas mais bonitas da redondeza, no intuito do vôlei. Só as meninas! Zeza, Vanda, Glorinha, Tânia, Rosa, Vera, Paulinha... E a fogosa senhorinha do bangalô ao lado ainda se debruçava toda prosa sobre a janela enquanto aumentava o volume da sua vitrola. Beatles! Só para eu perceber que estava morando no céu!
“Eight days a week / I love you… / Eight days a week /is not enough to show / I care!”.
No
mais, tudo são lembranças. O sobrado, por decisão da sua diretoria
administrativa foi cabalmente vendido e levado à pique com tudo o que lhe havia
ao entorno, cedendo lugar ao edifício Iracema Residencial Service, um gaiolão
de vários andares que ainda hoje persiste e me maltrata o ego. Da União só
herdei uma fotografia em preto-e-branco com a qual eu enfeito a abertura desta
crônica.
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