A SÚMULA 72 E
O IMPEDIMENTO NO STF
Djalma Pinto*
Lê-se no verbete da Súmula 72, do STF: “No julgamento de questão constitucional, vinculada a decisão do Tribunal Superior Eleitoral, não estão impedidos os ministros do Supremo Tribunal Federal que ali tenham funcionado no mesmo processo, ou no processo originário”.
Referida Súmula foi aprovada em 1963, sob a vigência da Constituição de 1946 e do Código de Processo Civil de 1939. Não tratou esse diploma processual de impedimento. Reportou-se apenas à suspeição, assim disciplinada no seu art. 119:
O juiz que se declarar suspeito motivará o despacho.
§ 1º Si a suspeição for de natureza intima, comunicará os motivos ao órgão disciplinar competente.
§ 2º O não cumprimento desse dever, ou a improcedência dos motivos, que serão apreciados em segredo de justiça, sujeitará o juiz à pena de advertência.
Por sua vez, o Código de Processo Civil de 1973, no
seu capítulo IV, Seção II, tratou da suspeição e do impedimento,
assim dispondo sobre este no art. 134, III:
É defeso ao juiz exercer as suas
funções no processo contencioso ou voluntário:
III - que conheceu em primeiro grau de jurisdição, tendo-lhe proferido sentença ou decisão;
Na vigência daquela legislação, somente ficaria impedido de participar de julgamento, nos tribunais, o magistrado que tivesse julgado a causa na primeira instância. Ministros dos tribunais superiores e do STF poderiam julgar recurso de suas decisões, proferidas nos tribunais regionais e no TSE, respectivamente, desde que não tivessem atuado no processo como juiz de primeiro grau.
A Constituição de 1988 implantou, porém, o Estado Democrático de Direito. Pressupõe este a plena observância da lei, votada pelos representantes do povo, na condição de delegados da soberania popular. Enfatizou, por meio do seu art. 3º, I, ser objetivo fundamental da República a construção de uma sociedade justa. É impossível ser concretizado o ideal de justiça, em qualquer grupo social em que admitida a participação de juízes impedidos nos julgamentos.
No rol dos direitos e garantias fundamentais, a Carta Magna vigente consagrou o devido processo legal (art. 5º, LIV) e proibiu qualquer julgamento por autoridade incompetente (art. 5º, LIII), como tal equiparada, para fins de nulificação do ato, o magistrado considerado impedido pela lei. Destaca J.J. Gomes Canotilho a necessidade de rigorosa observância das regras processuais para se alcançar o processo “justo”:
“A proteção alargada através da exigência de um processo equitativo significará também que o controlo dos tribunais relativamente ao carácter “justo” ou “equitativo” do processo se estenderá, segundo as condições particulares de cada caso, às dimensões materiais e processuais do processo no seu conjunto. O parâmetro de controlo será, sob o ponto de vista intrínseco, o catálogo dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados e os direitos de natureza análoga constantes de leis ou convenções internacionais. Mas o controlo pautar-se-á ainda pela observância de outras dimensões processuais materialmente relevantes.”[1]
Ao ensejo de concretizar o ideal de justiça, o Código de Processo Civil de 2015, implantado pela Lei nº 13.105, de 16/03/2015, foi rigoroso na garantia de preservação da imparcialidade nos julgamentos no âmbito do Poder Judiciário. Dispôs no seu art. 144:
“Há impedimento do
juiz, sendo-lhe vedado exercer suas funções no processo: [...]
II - de que conheceu em outro grau de jurisdição, tendo proferido decisão;”
Assim, em cumprimento da exigência constitucional de julgamento justo, o Novo CPC proíbe qualquer juiz, no Brasil, que tenha participado do julgamento de um processo, de participar da sessão em que apreciado eventual recurso de decisão por ele prolatada em outro grau de jurisdição. A inobservância dessa proibição acarreta a nulidade da decisão, inclusive com desfazimento da coisa julgada, por determinação do art. 966 do NCPC:
“A decisão de mérito, transitada em julgado, pode
ser rescindida quando:
II – for proferida por juiz impedido ou por juízo absolutamente incompetente.”
A exigência de absoluta isenção, na atuação dos magistrados, é tão marcante no seio da sociedade brasileira que a Lei nº 1.079, de 10/04/1950, no seu art. 39, relaciona a suspeição como um dos fatos tipificadores do crime de responsabilidade, gerador de impeachment de Ministro do Supremo Tribunal Federal, nestes termos:
“São crimes de responsabilidade dos Ministros do
Supremo Tribunal Federal:
2 - proferir
julgamento, quando, por lei, seja suspeito na causa;”
A
participação de juiz impedido por lei, em qualquer julgamento, é muito mais
grave do que a de um magistrado suspeito. Fere de morte o princípio da
imparcialidade, parte substantiva do devido processo legal. A suspeição, não
arguida no devido tempo, preclui pela inércia da parte. Por isso, não desfaz a
sentença que transita em julgado. O impedimento, entretanto, é proibição
objetiva de atuação do magistrado impossível de ser contornada. É
irregularidade insanável.
Na verdade, além de subverter garantias fundamentais asseguradas na Constituição, o julgamento com a participação de magistrado impedido, viola Tratados Internacionais dos quais o Brasil é signatário. Lê-se, a propósito, no artigo 8 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos:
“Garantias judiciais: "1. Toda
pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo
razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido
anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra
ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil,
trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”.
No
mesmo sentido, exigindo independência e imparcialidade nas decisões dos
tribunais, o art. 14 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos:
“1. Todas as pessoas são iguais perante os tribunais e as cortes de justiça. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com devidas garantias por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil. [..]”
Enfim, a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos fez constar a exigência de imparcialidade do julgador no seu art. 10:
“Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida” .
Como se vê, a Súmula 72 assenta-se em
jurisprudência consolidada sob a vigência da Constituição de 1946 e do CPC de
1939. Não havia, no momento de sua edição, proibição da participação do
magistrado no julgamento de recurso interposto contra decisão por ele proferida
em outra jurisdição.
A norma do art. 144, II, do Novo CPC, não é
inconstitucional. Pelo contrário, assegura efetividade ao devido
processo legal consagrado na Constituição vigente. Superado, se encontra,
portanto, o enunciado 72 do Supremo Tribunal Federal. Resta aguardar o seu
cancelamento.
Essa providência se impõe para evitar, inclusive,
arguição de nulidade dos julgamentos com a participação de magistrados
impedidos. Afinal, importará em gravíssima ofensa ao Estado Democrático de
Direito, por exemplo, a ratificação pela Suprema Corte da cassação do mandato
de um cidadão, nele investido pela força da soberania popular, em processo em
que o impedimento do julgador esteja expressamente previsto na lei processual
em vigor.
[1]
CANOTILHO, J. J.
Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª
ed., 9 reimp. Portugal - Coimbra: Edições Almedina, 2012, p. 495.
Nenhum comentário:
Postar um comentário