sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

CRÔNICA - Agora (PX)

 AGORA 
Paulo Ximenes*

 

O remelexo das mulatas na Praça Castro Alves, o frenesi nas ruas apinhadas do Recife e de Olinda, a arte afro-brasileira produzindo o maior espetáculo da terra na Marquês de Sapucaí, são incisivos por demais na minha tela de tevê. Desta feita, os festejos multicores de carnaval não me causam a mesma disposição de ânimo que costumavam me eletrizar e fazer de mim um baluarte da alegria.

 

Escrevo esta dorida crônica inteiramente no presente do indicativo, muito embora, alguns dias mais adiante, os seus verbos hão de se enquadrar melhor no pretérito perfeito. Esse agorinha mesmo a que tão arfantemente me refiro, vem ao propósito de eu exprimir para os ouvidos do futuro, que decorro, nesse exato instante, uma manga de solidão.  

Em outras palavras, isso é doidice de nordestino tupiniquim que se abestalha em mergulhar fundo no oceano dos sentimentos. É intrigante o redemoinho e o leva e traz de uma briga de amor. Nessas profundezas... Ah meu Deus! Há bichos e monstros que talvez sejam mesmo do tamanho que a gente imagina.  

O carnaval tem nada a ver com o caso. Ele só chegou na hora imprópria. Enquanto isso, confinado em meu apartamento, tenho o freezer locupletado de cerveja e o quartinho de depósito escondendo as relíquias do passado recente – um velho surdo, um reco-reco, dois tamborins, três baquetas, um quepe de marinheiro, uma camiseta alvirrubra, um bermudão branco e um colar havaiano...

 

De resto, não me faltam os mimos da tecnologia, os controles remotos pra tudo quanto é serventia; as facilidades para tudo quanto é lado; as respostas rápidas a um toque de dedo. No bolso uma boa pecúnia e na garagem um carrinho modesto, mas abastecido até a tampa para o caso de ganhar o mundo. Dos bares, meus amigos me mandam recados pelo Zap, convidam-me para cair na folia. Blocos de carnaval, maracatus e outros ziriguiduns fervilham pelos bairros de Fortaleza. E ainda há, durante as noites, os bailes do Náutico. Mas onde já se viu ir ao carnaval com a alma despedaçada? 

Vêm-me as lembranças do quanto eu me envolvi com essas coisas! Fui tão longe quanto se possa ter ido: na avenida pus as mãos em tamborins, apaixonei-me pelas passistas, pintei o sete, cantei o samba como um louco, meti a mão no bolso, fiz o que pude para ver a minha escola sagrar-se campeã. No afã daqueles sonhos, percebo agora, vadeei pelas marginais do raciocínio.

  

Mas nesse instante vivo, nesse ar que me enche os pulmões, tenho o coração trapaceado e os pés noutra estação. Tudo se aplana numa noite morna, e os ruídos do carnaval são apenas martírios que devo suportar. Se abro janelas e afasto cortinas, contemplo espigões herméticos zombando de mim. Vinga neles a tirania da verdade. Estou morto mesmo! Para que serve um indivíduo apaixonado? 

Moro um pouco afastado desses epicentros. Olho para a rua largada de gente, sem um pé de pessoa, sem o ronco de um carro. Uma rajada de vento tenta alegrar as folhas de uma castanhola, mas só a torna mais submissa, presa em seu lugar. Eu, as calçadas e as folhas presas estamos sem brios! Não combinamos com essa expansão de alegria. Tornamo-nos unos, chatos de galochas. 

La fora me perturbam as repetições que antes não me incomodavam: as mesmas marchinhas carnavalescas, os mesmos ritmos dos tambores, a mesma cadência, e, quem sabe, as mesmas fantasias de todos esses anos... Estabelece-se um contraste entre o que vejo na televisão e o que sinto cá dentro do peito. 

Não tenho vontade de ler. Invento um gole de cerveja. Continuo arriscando um olho na telinha. A cerveja não desce. O ritmo não inova. Nem mesmo sei o que estou buscando. As cores explodem no meu televisor, mas o brilho é fusco. Nem ao menos identifico que cidade é aquela e que povo maluco é aquele. Só percebo que o batuque evolui de forma medonha, arrasta multidões, serpenteia pelo chão feito um dragão chinês.  Bisonhice!!! 

Céus! Provenham-me com um mínimo de lucidez! 

Não pode ser aquilo uma bisonhice! Carnaval é agua fria na fervura da vida. O que vem para a alegria geral do povo só pode ser da providência divina. Bisonho é o meu coração aflito, que não respira, não relaxa e leva um carnaval a ficar triste.


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