O ALIENISTA
Rui Martinho Rodrigues*
É difícil escolher as melhores, entre as obras
de
J. M. Machado de Assis (1839 – 1908). Mas apontar preferência é fácil. “O Alienista” é uma das minhas preferidas. Nela o personagem central, um médico de
competência reconhecida na Europa, o Dr. Bacamarte, se interessa por
psiquiatria, passa a diagnosticar doença mental em todas as pessoas e a
interna-las. Termina por concluir que o doente é ele mesmo e resolve ficar
interno.
A fronteira entre o normal e o patológico é assim questionada, juntamente com a autoridade científica. Obra publicada pela primeira vez em 1882, quando o positivismo de Auguste Comte (1798 – 1857) era a grande influência e apresentava a ciência como monolítica e fonte de verdades inquestionáveis. Mais tarde Georges Canguilhem (1904 – 1995), estudioso de epistemologia, história da ciência e médico, questionou o significado de normal e patológico.
O Dr. Bacamarte, inicialmente, parece adotar o
conceito funcional de normalidade e patologia, diagnosticando doença mental em
quem não se enquadrava nos padrões de funcionalidade. Depois de detectar
patologias em todos, passou a seguir um conceito estatístico. Vendo a ausência
generalizada da funcionalidade padrão, achou que era o normal a
desfuncionalidade. Ele não se enquadrava no padrão disfuncional: era o único
doente.
O psiquiatra britânico Theodore Dalrymple (Anthony Daniels, 1949 – vivo), diz que a humanidade está desorientada, desorientação induzida por pensadores cujas teorias levam ao divórcio com a realidade, a imunização cognitiva. Seria o médico inglês semelhante ao Dr. Bacamarte? É possível distingui-lo do personagem machadiano. O normal e o patológico existem, por maiores que sejam os problemas que possam suscitar. O normal não é uma estatística, é funcional. Uma população toda acometida de cárie dental não tornaria normal tal coisa.
Ignorar os fatos pode ser o que Gaston Bachelard (1884 – 1962), “O Novo Espírito Científico”, aludiu como “obstáculo epistemológico”, um conhecimento havido como provado, que bloqueia a compreensão de conhecimento divergente. Pode ser a cegueira dos paradigmas ou “ciência normal”, o fenômeno pelo qual os pressupostos teóricos, metodológicos e as premissas impedem a percepção dos erros do paradigma (Thomas Kuhn, 1922 – 1996, “A estrutura das revoluções científicas”). Pode ser paixão, conveniência política ou econômica ou, por fim, desorientação.
Todos estão desorientados? Não. Os pressupostos teóricos e metodológicos são apresentados de modo catequético pelas escolas, literatura, indústria cultural e imprensa formando um obstáculo epistemológico (Bachelard) ou paradigma incomunicável (Kuhn). Nenhuma inovação radical jamais foi compreendida ou aceita pela comunidade científica antes que passasse uma geração. Pessoas inteligentes e cultas são mais atingidas pela cegueira dos paradigmas, por terem muitos argumentos de autores renomados dificultando a compreensão de teorias diferentes e até dos fatos. A história da ciência é um cemitério de erros (Alexandre Koyré, 1892 – 1964, “Estudos de história do pensamento científico”).
Ciência é um concurso de conjecturas e refutações (Karl Popper, 1902 – 1994, “Conjecturas e refutações”), que avança corrigindo erros. Ciência monolítica e indubitável é o equívoco que inspira a cegueira dos paradigmas (Kuhn) e a desorientação (Dalrymple). A cegueira é atribuída ao outro, escudada no prestígio de pensadores, por erro de boa-fé ou por imposturas intelectuais (Alan Sokal, 1955 – vivo; e Jean Bricmont, 1952 – vivo, “Imposturas intelectuais”).
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