A Poça D’água
Paulo Ximenes*
É
só cair uma chuvinha mais demorada para isso mudar a feição da minha cidade. As
águas tomam conta de tudo, das pessoas, das calçadas, do trânsito, dos bichos.
O caos se estabelece na via pública. Os compromissos se retardam e os negócios
se atrapalham. Que novidade! Vêm de longe a arruaça que as chuvas fazem nas
capitais do país. Árvores tombam. Carros morrem em riachos. Semáforos entram em
paranoia.
Vendo
a chuva que agora acontece, vem-me à lembrança alguns fatos transcorridos no
centro da cidade, relativamente recentes. Num deles, um grupo de belas
estudantes da Escola Justiniano de Serpa, pelas imediações do Palácio
Progresso, esgoelavam gritos de terror e davam-se as mãos a cada papoco de
trovão; cessado o tiroteio elas se desgarravam e saíam de chouto, cada uma para
o seu lado, saltitando sobre as pequenas lagoas que se formavam nas calçadas,
até que um novo estrondo as unissem novamente. Pareciam não entender que o
perigo morava nos raios, não nos trovões. De qualquer sorte, no corre-corre, no
segurar das barras das saias, formidáveis troncos de coxas eram expostos às
vistas de todos.
Outro se deu num dos cruzamentos da avenida Heráclito Graça, sob semelhantes condições meteorológicas, em que eu me vi amontoado a uma dúzia de transeuntes, todos com os olhares grudados no semáforo. À minha esquerda, no asfalto, quase à beira da calçada, uma poça d’água me espreitava. Provavelmente a depressão no terreno importasse um metro e meio de diâmetro por um palmo de profundidade, nada de excepcional que propiciasse um apocalipse, mas o suficiente para um estardalhaço d’água voando em todas as direções, caso um pneu daqueles cortasse ao meio. E eles passavam numa velocidade de quarenta a cinquenta quilômetros por hora “tirando um fino” em suas bordas.
Ser
precavido não é pensar no pior. Ser precavido é ser precavido. Então, estando
eu defronte àquela poça, recuei uns três passos, sem tirar os olhos dos bólidos
borrachudos que cada vez mais se aproximavam de um desmantelo. Mas a outra
vítima em potencial, parecia não dar conta do perigo. Era o sujeito mais bem
trajado do grupo, esbelto, todo no linho branco, ruivo, cabelos encarapinhados,
óculos à pincinê e barba pontiaguda no queixo, lembrando o Visconde de Sabugosa
do Monteiro Lobato. Portava uma pilha de papéis e se absorvia na leitura de
algum manuscrito. A camisa de mangas compridas com abotoaduras douradas não
escondia o relógio de aspecto caro, e chamava a atenção o cinto de couro
combinando com a leve tonalidade marrom dos sapatos de bico fino.
Qualquer
cidadão com mediana capacidade cognitiva deduziria que se tratava ali de um
grã-fino, cujo carrão dera pane no aguaceiro. O que Importa é que o “visconde”
se detinha a menos de dois metros do epicentro, a um passo de tomar um banho
fétido, porque as primeiras águas do ano são sempre sujas, as ruas estão sempre
embrenhadas de poeira, de carcaça e fezes de pequenos animais.
Uma
camioneta pesada passou raspando. Desta vez foi por um triz. Não me contive.
Bati sutilmente no ombro do cidadão, apontei para o chão e lhe disse na maneira
mais educada que eu pude: “O senhor corre o risco de se molhar, caso algum
carro desses trisque nesta poça d’água”. Não sei se dessa forma eu o chamei de
pouco inteligente. Não tive essa intenção. Juro que não! O que conta é que sua
resposta foi maligna: fitou-me por uns três ou quatro segundos, como quem
contemplasse um tonto. E sem arredar um milímetro de onde estava, virou-se para
o outro lado, num desdém que não era desse mundo. O fato de ele não ter saído
do canto, foi de uma gravidade atroz; fez todo mundo perceber aquela clássica
aplicação de desprezo, executada ao vivo e à cores. Foi como se houvesse me
dito para todo mundo ouvir: vá cuidar da sua vida, moço! Da minha cuido eu...
Doeu.
Que sujeito abusado! Fiquei sem ter para onde olhar, procurando bolsos para
esconder as mãos. Não sei por que cargas d’água ainda me meto a ajudar a quem
não conheço! Sucedeu que um ar corroído se despencou à minha volta. Não há quem
possa contradizer a verdade de que essas coisas espetam os brios das pessoas
mais pacatas. Via de regra, atiçam nelas o impulso da vingança. Sentimento
mesquinho, admito! Mesmo assim não conseguiram me segurar as âncoras do
espírito elevado, e, num vil segundo de distração, escapuliu-me o atroz agouro:
“tomara que um pneu desses acerte bem no meio do buraco, só pra dá um banho bem
grande nesse deslumbrado!”. Mal eu sequei o pensamento, deu-se o fato por
consumado:
Vapt!!!
Um
fusca conduzido por um elemento idoso (devia ir pelos oitenta anos), cumpriu os
meus votos com magistral pujança. Não teve a destreza para fazer o desvio
necessário e espalhou o “precioso líquido” para tudo quanto foi lado. O
visconde, por conta da sua indolência, levou um banho da cabeça aos pés. Jatos
d’água não têm juízo, não poupam ninguém. Ali estava o resultado: papéis
molhados, óculos arremessados ao chão, e de quebra, a calça de linho branca
encharcada, agora semitransparente, denunciava a extravagante combinação de
cores: era no tom de cenoura a peça mais íntima do seu vestuário. Cena
burlesca. Ali estava um palhaço ante o picadeiro. A plateia do outro lado
irrompeu em ruidosa gargalhada. Houve até quem providenciasse uma bela vaia,
que o cearense, ainda mais molhado, adora fazer dessas coisas. Espalhafato
igual eu ainda nunca tinha visto.
O
sinal esverdeou. Seguimos em frente, uma penca de marmotosos, reféns da chuva e
do trânsito. No próximo sinal fechado, o barba-de-bode deixando de lado a sua
leitura paralela, manteve exagerada distância para uma poça d’água que de tão
pequena já não metia medo a ninguém. É a velha teoria do gato escaldado. Também
caberia ali outro adágio: seria cômico se não fosse penoso! O incidente cresceu
em importância porque a ingrata criatura fora advertida a tempo. Os que
presenciaram o episódio, entre olhares esquivos, fingiam ter percebido coisa
nenhuma. E ainda se esforçavam para não cair no riso compulsivo. E eu, a vítima
legítima do achaque, entrevia, naquela simulação de sentidos, um aceno de
solidariedade coletiva pelo belo constrangimento a que fui submetido. Segue a
vida. Cada qual com seu pensamento, suas dores, perdas e danos.
Felizmente,
escrevo. A narração deste episódio – prato frio que deve ser comido pelas
beiradas – não seria uma vindita de fato se não houvesse um livro pronto para
acolhê-la. Afinal, tenho todo o direito a me estrebuchar, porque, embora haja
controvérsias, um homem é apenas a consequência das suas circunstâncias. Talvez
por isso, naquele instante choco, barganhavam estranhas percepções entre si, o
contentamento e a raiva, a vitória e a derrota. No meu rosto vingado sopravam
os ventos do Olimpo; talvez fosse mister ao elegante “visconde” sentir-se
apenas um varapau molhado e acabrunhado, louco para sumir de cena.
Era
um dia fechado. Das bandas de Caucaia ouviu-se mais um trovão. Um corisco
riscou em algum lugar. Tempo abafado. Tempestuoso. Nenhum raio de sol ameaçava
escapulir das nuvens de chumbo. Sob a penumbra celeste os carros continuavam
zoando um atrás do outro, e os faróis acesos refletiam-se e multiplicavam-se
nos pisos molhados, parecendo procurar por novas poças d’água para atazanar a
vida de outros lesados.
Mais
um sinal fechado. Tenho o privilégio da boa visão periférica, destreza mais
comum entre as mulheres, de sorte que consigo prestar atenção ao que se passa
ao meu redor, mantendo um foco visual noutra direção, tudo com eficiência e
riqueza de detalhes, sem que ninguém me perceba. De esguelha, ele ainda
arriscou um vago olhar na minha direção, mas evitei que nossas vistas se
encontrassem. Permaneci absorto em meu “olhar distante” enquanto ele devia ir
ouvindo do meu franco silêncio:
“Eu não lhe avisei?”
Nenhum comentário:
Postar um comentário