domingo, 31 de outubro de 2021

CRÔNICA - A Poça d'Água (PX)

 A Poça D’água
Paulo Ximenes*

 

 

É só cair uma chuvinha mais demorada para isso mudar a feição da minha cidade. As águas tomam conta de tudo, das pessoas, das calçadas, do trânsito, dos bichos. O caos se estabelece na via pública. Os compromissos se retardam e os negócios se atrapalham. Que novidade! Vêm de longe a arruaça que as chuvas fazem nas capitais do país. Árvores tombam. Carros morrem em riachos. Semáforos entram em paranoia. 

 

Vendo a chuva que agora acontece, vem-me à lembrança alguns fatos transcorridos no centro da cidade, relativamente recentes. Num deles, um grupo de belas estudantes da Escola Justiniano de Serpa, pelas imediações do Palácio Progresso, esgoelavam gritos de terror e davam-se as mãos a cada papoco de trovão; cessado o tiroteio elas se desgarravam e saíam de chouto, cada uma para o seu lado, saltitando sobre as pequenas lagoas que se formavam nas calçadas, até que um novo estrondo as unissem novamente. Pareciam não entender que o perigo morava nos raios, não nos trovões. De qualquer sorte, no corre-corre, no segurar das barras das saias, formidáveis troncos de coxas eram expostos às vistas de todos. 

 

Outro se deu num dos cruzamentos da avenida Heráclito Graça, sob semelhantes condições meteorológicas, em que eu me vi amontoado a uma dúzia de transeuntes, todos com os olhares grudados no semáforo. À minha esquerda, no asfalto, quase à beira da calçada, uma poça d’água me espreitava. Provavelmente a depressão no terreno importasse um metro e meio de diâmetro por um palmo de profundidade, nada de excepcional que propiciasse um apocalipse, mas o suficiente para um estardalhaço d’água voando em todas as direções, caso um pneu daqueles cortasse ao meio. E eles passavam numa velocidade de quarenta a cinquenta quilômetros por hora “tirando um fino” em suas bordas.



 

 

Ser precavido não é pensar no pior. Ser precavido é ser precavido. Então, estando eu defronte àquela poça, recuei uns três passos, sem tirar os olhos dos bólidos borrachudos que cada vez mais se aproximavam de um desmantelo. Mas a outra vítima em potencial, parecia não dar conta do perigo. Era o sujeito mais bem trajado do grupo, esbelto, todo no linho branco, ruivo, cabelos encarapinhados, óculos à pincinê e barba pontiaguda no queixo, lembrando o Visconde de Sabugosa do Monteiro Lobato. Portava uma pilha de papéis e se absorvia na leitura de algum manuscrito. A camisa de mangas compridas com abotoaduras douradas não escondia o relógio de aspecto caro, e chamava a atenção o cinto de couro combinando com a leve tonalidade marrom dos sapatos de bico fino.  

 

Qualquer cidadão com mediana capacidade cognitiva deduziria que se tratava ali de um grã-fino, cujo carrão dera pane no aguaceiro. O que Importa é que o “visconde” se detinha a menos de dois metros do epicentro, a um passo de tomar um banho fétido, porque as primeiras águas do ano são sempre sujas, as ruas estão sempre embrenhadas de poeira, de carcaça e fezes de pequenos animais.  

 

Uma camioneta pesada passou raspando. Desta vez foi por um triz. Não me contive. Bati sutilmente no ombro do cidadão, apontei para o chão e lhe disse na maneira mais educada que eu pude: “O senhor corre o risco de se molhar, caso algum carro desses trisque nesta poça d’água”. Não sei se dessa forma eu o chamei de pouco inteligente. Não tive essa intenção. Juro que não! O que conta é que sua resposta foi maligna: fitou-me por uns três ou quatro segundos, como quem contemplasse um tonto. E sem arredar um milímetro de onde estava, virou-se para o outro lado, num desdém que não era desse mundo. O fato de ele não ter saído do canto, foi de uma gravidade atroz; fez todo mundo perceber aquela clássica aplicação de desprezo, executada ao vivo e à cores. Foi como se houvesse me dito para todo mundo ouvir: vá cuidar da sua vida, moço!  Da minha cuido eu... 

 

Doeu. Que sujeito abusado! Fiquei sem ter para onde olhar, procurando bolsos para esconder as mãos. Não sei por que cargas d’água ainda me meto a ajudar a quem não conheço! Sucedeu que um ar corroído se despencou à minha volta. Não há quem possa contradizer a verdade de que essas coisas espetam os brios das pessoas mais pacatas. Via de regra, atiçam nelas o impulso da vingança. Sentimento mesquinho, admito! Mesmo assim não conseguiram me segurar as âncoras do espírito elevado, e, num vil segundo de distração, escapuliu-me o atroz agouro: “tomara que um pneu desses acerte bem no meio do buraco, só pra dá um banho bem grande nesse deslumbrado!”. Mal eu sequei o pensamento, deu-se o fato por consumado:  

 

Vapt!!!  

 

Um fusca conduzido por um elemento idoso (devia ir pelos oitenta anos), cumpriu os meus votos com magistral pujança. Não teve a destreza para fazer o desvio necessário e espalhou o “precioso líquido” para tudo quanto foi lado. O visconde, por conta da sua indolência, levou um banho da cabeça aos pés. Jatos d’água não têm juízo, não poupam ninguém. Ali estava o resultado: papéis molhados, óculos arremessados ao chão, e de quebra, a calça de linho branca encharcada, agora semitransparente, denunciava a extravagante combinação de cores: era no tom de cenoura a peça mais íntima do seu vestuário. Cena burlesca. Ali estava um palhaço ante o picadeiro. A plateia do outro lado irrompeu em ruidosa gargalhada. Houve até quem providenciasse uma bela vaia, que o cearense, ainda mais molhado, adora fazer dessas coisas. Espalhafato igual eu ainda nunca tinha visto. 

 

O sinal esverdeou. Seguimos em frente, uma penca de marmotosos, reféns da chuva e do trânsito. No próximo sinal fechado, o barba-de-bode deixando de lado a sua leitura paralela, manteve exagerada distância para uma poça d’água que de tão pequena já não metia medo a ninguém. É a velha teoria do gato escaldado. Também caberia ali outro adágio: seria cômico se não fosse penoso! O incidente cresceu em importância porque a ingrata criatura fora advertida a tempo. Os que presenciaram o episódio, entre olhares esquivos, fingiam ter percebido coisa nenhuma. E ainda se esforçavam para não cair no riso compulsivo. E eu, a vítima legítima do achaque, entrevia, naquela simulação de sentidos, um aceno de solidariedade coletiva pelo belo constrangimento a que fui submetido. Segue a vida. Cada qual com seu pensamento, suas dores, perdas e danos.  

 

Felizmente, escrevo. A narração deste episódio – prato frio que deve ser comido pelas beiradas – não seria uma vindita de fato se não houvesse um livro pronto para acolhê-la. Afinal, tenho todo o direito a me estrebuchar, porque, embora haja controvérsias, um homem é apenas a consequência das suas circunstâncias. Talvez por isso, naquele instante choco, barganhavam estranhas percepções entre si, o contentamento e a raiva, a vitória e a derrota. No meu rosto vingado sopravam os ventos do Olimpo; talvez fosse mister ao elegante “visconde” sentir-se apenas um varapau molhado e acabrunhado, louco para sumir de cena.  

 

Era um dia fechado. Das bandas de Caucaia ouviu-se mais um trovão. Um corisco riscou em algum lugar. Tempo abafado. Tempestuoso. Nenhum raio de sol ameaçava escapulir das nuvens de chumbo. Sob a penumbra celeste os carros continuavam zoando um atrás do outro, e os faróis acesos refletiam-se e multiplicavam-se nos pisos molhados, parecendo procurar por novas poças d’água para atazanar a vida de outros lesados.  

 

Mais um sinal fechado. Tenho o privilégio da boa visão periférica, destreza mais comum entre as mulheres, de sorte que consigo prestar atenção ao que se passa ao meu redor, mantendo um foco visual noutra direção, tudo com eficiência e riqueza de detalhes, sem que ninguém me perceba. De esguelha, ele ainda arriscou um vago olhar na minha direção, mas evitei que nossas vistas se encontrassem. Permaneci absorto em meu “olhar distante” enquanto ele devia ir ouvindo do meu franco silêncio:

 

“Eu não lhe avisei?”.


 

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